A entrega da medalha da Ordem do Mérito do Livro, pela Biblioteca Nacional, ao deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ), no último dia 1.º de julho, ultrapassou todos os limites do deboche. O que poderia ser entendido como mais uma demonstração da corriqueira irreverência do governo do presidente Jair Bolsonaro em relação à cultura e às instituições, é na verdade bem mais que isso: a condecoração de Silveira com uma das mais altas honrarias culturais do País reveste-se de perigoso simbolismo que nada tem de banal.
Desde a posse do presidente, em 1.º de janeiro de 2019, o grupo que chegou ao poder já deu sucessivas demonstrações de que trava uma guerra contra a razão. Não que haja surpresa nisso: governos com tendências autoritárias costumam se contrapor à racionalidade e ao pensamento livre. Cultuam uma espécie de anti-intelectualismo que vê as artes, o uso da inteligência e qualquer espécie de crítica como ameaças, avessos que são ao contraditório e ao exercício da liberdade, exceto a própria.
Sob Bolsonaro, a área da cultura virou vitrine de batalhas ideológicas em que o imperativo parece ser o de desfazer boa parte do que o País levou décadas para construir − e que contribuiu para a pujança, a criatividade e a diversidade da cultura nacional. Nos últimos três anos e meio, a sociedade brasileira, boquiaberta, já viu de tudo: até discurso inspirado em Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Adolf Hitler na Alemanha nazista, proferido pelo então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, em 2020. Enquanto isso, artistas consagrados eram tratados com desrespeito e a Lei Rouanet, mecanismo concebido para fomentar o desenvolvimento cultural, demonizada.
É nesse contexto de ataque à cultura que a condecoração do deputado Silveira causa redobrada indignação. Como se sabe, o parlamentar bolsonarista foi condenado em abril a 8 anos e 9 meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após ter defendido o fechamento da Corte e incitado agressões a ministros. Silveira só deixou de cumprir a pena graças a um inusitado indulto concedido pelo presidente Jair Bolsonaro no dia seguinte ao julgamento − indulto esse que, cabe lembrar, não o inocenta das graves acusações que levaram à sua condenação.
Pior: o parlamentar ganhou notoriedade bem antes dos ataques ao STF. Na campanha eleitoral de 2018, ele saiu do anonimato para a ribalta bolsonarista ao quebrar uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada a tiros na cidade do Rio de Janeiro meses antes.
A Ordem do Mérito do Livro foi entregue na sede da Biblioteca Nacional, uma prestigiada instituição cuja origem é anterior à Independência do Brasil. A distinção, é bom lembrar, reconhece a contribuição de escritores, intelectuais e personalidades à literatura brasileira e à própria Biblioteca Nacional. Tal homenagem já foi concedida a nomes como o poeta Carlos Drummond de Andrade, o sociólogo Gilberto Freyre e o arquiteto Oscar Niemeyer. Por uma infeliz coincidência, Silveira, um orgulhoso analfabeto cívico, foi condecorado no ano do Bicentenário da Independência do Brasil.
Por óbvio, houve reações. O escritor e poeta Marco Lucchesi, que também seria contemplado, recusou-se a receber a honraria. “Se eu aceitasse a medalha seria referendar Bolsonaro”, disse Lucchesi. E completou: “Agradeço, mas não posso aceitar”. Na mesma linha, os netos de Drummond, Pedro e Maurício Drummond, divulgaram carta classificando como “verdadeiro deboche” o reconhecimento conferido a Silveira. Ambos afirmaram que, na época em que o avô ganhou a medalha, as autoridades “não nos envergonhavam e não nos apequenavam como nação”.
Essas críticas, ao contrário de constranger Bolsonaro e seus fanáticos seguidores, provavelmente serão recebidas como elogios por essa horda bárbara que tomou o poder. Afinal, ao bolsonarismo interessa representar o exato oposto da civilização e da razão. Não por acaso, o presidente, em recente live nas redes sociais, disse que, se o petista Lula da Silva vencer a eleição, “clube de tiro vai virar biblioteca”. Que perigo!