O ruidoso grito de organizações indígenas reunidas recentemente no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, o tom e a intensidade das críticas e a crescente frustração de lideranças com o que consideram letargia na demarcação de terras são três dos sinais mais evidentes de uma bomba-relógio já armada: há um clima cada vez mais generalizado de insatisfação dos movimentos indígenas. Incomodados com a distância que separa aquilo que o candidato Lula da Silva prometeu do que efetivamente foi cumprido, indígenas divulgaram um duro documento e, recebidos no Palácio do Planalto, fizeram cobranças diretas. Queixosos, mas preocupados em aliviar a barra presidencial, responsabilizaram ministros pelos problemas. Como é seu hábito ao sentir-se confrontado por descumprir promessas, justificar a inépcia do governo e resumir o mundo entre bons e maus, Lula transferiu a culpa para governadores e fazendeiros.
Como em muitas outras agendas relevantes, na eleição Lula havia prometido aos indígenas o paraíso na terra caso retornasse ao Palácio do Planalto. Aos movimentos indígenas parecia um triunfo ainda mais inevitável depois de quatro anos precisando lidar com um governo que só enxergava entre os povos originários verdadeiros inimigos a combater, e via o perigo brotar das árvores da floresta. Ocorre que o então candidato lulopetista os fez acreditar que tudo seria luminosamente distinto: indígenas seriam protegidos, terras seriam homologadas e demarcadas nos primeiros 100 dias de mandato e os conflitos enfim cessariam. A realidade, no entanto, desabonou tais promessas.
Antes fosse um risco político restrito a líderes lulopetistas. A questão se torna mais grave quando uma soma de equívocos pode converter a frustração indígena num ambiente de guerra. “Declaração de guerra” contra os povos indígenas e seus territórios, a propósito, foi a expressão não aleatoriamente usada pelas organizações que assinam o documento no qual condenam as recentes decisões que suspendem as demarcações de terras. Pesa, para essa avaliação, tanto a tibieza da política indigenista do governo Lula – hoje não muito mais do que simbologias, materializadas na pouca ou nenhuma força prática do Ministério dos Povos Indígenas e no fracasso, por exemplo, na tentativa de salvar os yanomamis da tragédia humanitária – como também as erráticas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no trato da matéria.
No ano passado, ao rejeitar a tese do chamado marco temporal, o STF julgou contra a Constituição e a própria jurisprudência definida em 2009 – aquela segundo a qual os povos indígenas só poderiam reivindicar as terras que ocupavam na data de promulgação da Constituição. Há poucos dias, em vez de fazer o controle da constitucionalidade, o ministro Gilmar Mendes, do STF, preferiu abrir um processo de “conciliação”, convocando os autores das ações em curso, como se a Suprema Corte fosse uma câmara de conciliação para negociar um direito previsto em lei. Para completar ainda se assiste à disfuncionalidade das relações entre os Poderes, com um Legislativo sentindo sua competência abalada pelo Supremo, um Judiciário que revê o próprio entendimento e um Executivo que trafega entre a fragilidade de sua base de apoio, promessas descumpridas e a tentação de criminalizar ruralistas dentro e fora do Congresso.
Só há um vitorioso nessa barafunda: o ecossistema do crime que atua na Amazônia. A ausência de pacificação institucional que dê fim aos conflitos – na interpretação da lei e no confronto direto nas terras – interessa tão somente àqueles que operam na ilegalidade. Diferentemente do que acredita a pajelança do governo, o agronegócio não é contrário à proteção dos povos originários. O que se acredita é que essa proteção não demanda a criação indefinida de novas reservas, que acaba transformando indígenas em objeto de eternas contendas políticas. Eis por que é preciso baixar o fogo dessa panela de pressão. Ao governo, convém acelerar sua inquestionável lentidão. Ao Supremo, é hora de resolver e não amplificar a confusão jurídica. Aos indígenas, os maiores penalizados, resta acreditar que a guerra continua a ser mais ineficaz do que pressão e diálogo.