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Para seguir adiante

Embora tardia, é bem-vinda a medida que reconhece Vladimir Herzog como anistiado político

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Por Notas & Informações
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Quase 50 anos depois de sua morte, o jornalista Vladimir Herzog foi oficialmente declarado anistiado político. Com a medida se avança mais um degrau numa escada civilizatória no Brasil: o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de sua responsabilidade pela violação de direitos humanos cometida por seus agentes durante a ditadura militar (1964-1985). Também se oficializou uma indenização vitalícia para a viúva, Clarice Herzog, atendendo a uma determinação da Justiça Federal. Em abril do ano passado, a Comissão de Anistia, órgão responsável por políticas de reparação e memória para as vítimas do período, já havia reconhecido que Clarice também foi perseguida em razão de sua luta após a morte do marido.

Trata-se de uma declaração bem-vinda e significativa, não obstante tenha levado tempo demais para ser oficializada. Famílias como a de Herzog, a do ex-deputado federal Rubens Paiva e muitas outras que tiveram parentes desaparecidos e mortos por ação direta e criminosa do Estado brasileiro de então passaram e ainda passam por longo calvário em busca de reconhecimento, reparação e justiça. Em tempos de elogio à truculência na política, elas são símbolos e testemunhas do que acontece quando liberdades básicas são sacrificadas pelo autoritarismo.

Era 25 de outubro de 1975 – ano em que o então presidente Ernesto Geisel iniciou a abertura “lenta, gradual e segura” – quando Vladimir Herzog teve a morte anunciada. Sob acusação de pertencer ao Partido Comunista, o então diretor de Jornalismo da TV Cultura foi detido, torturado e assassinado. Atestada por um inquérito fajuto que durou apenas cinco meses, sua morte foi encenada para parecer um suicídio, em farsa tão evidente que o cemitério israelita nem sequer considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a religião judaica.

Enquanto parte do Brasil enfrentava o medo e se mobilizava pela volta à democracia, a linha-dura militar sabotava os planos de abertura. A farsa do suicídio de Vladimir Herzog era parte daquela sabotagem, com repressão, tortura e assassinatos nos chamados “porões da ditadura”, além de atentados que durariam anos. “Interessa-nos saber a responsabilidade por esse clima de terrorismo: pois é de terrorismo que se trata”, dizia um editorial do Estadão dias depois da morte do jornalista.

Desde então o País ainda deve o reconhecimento e a reparação por atrocidades cometidas naqueles anos, apesar da desconfiança notória de quem ainda busca celebrar o “movimento revolucionário” de 1964 como símbolo da vontade geral do povo e da liberdade contra o radicalismo. É uma lacuna que só atrapalha a esperança de que possamos seguir adiante – sem traumas, medos nem dívidas do passado.

O reconhecimento aos Herzogs se presta a isto: seguir adiante. Como este jornal já sublinhou outras vezes, anistiar não significa esquecer. Mais: reconhecer e reparar não significam revanche, tampouco significam negar a Lei da Anistia, de 1979. Essa distinção é fundamental e garante a exata compreensão da responsabilidade do Estado pela morte presumida de cidadãos que estavam sob sua custódia porque ousaram se contrapor a um regime de exceção.