Introvertidos sentem medo do que vai pelo mundo, extrovertidos são a causa desse medo. A soberba se introduz na confiança dos pequenos e nos negócios dos grandes. Quem se mete na vida dos outros deve compor a si mesmo. Contradição e bobagem é querer pescar carpa com isca de minhoca. A excentricidade é própria do mundo do circo.
O declínio da civilidade é a cegueira do conhecimento que pôs fim ao milagre da genialidade substituído pelo sucesso de extravios e escândalos. Educação de circunstância sem ligar para a condição humana. Que valor tem alguém a não ser aquele atribuído por quem usufrui do seu valor? A renovação do Estado é feita por velhas empresas de concurso ou pela pequenez das bancas. O strip-tease dos penduricalhos despe o íntimo da justiça. A comédia da adulação, a força de personagens normativos, a ideologia superior à compaixão fazem desdenhosa e cansativa a vida de quem é modesto, de cultura regular e hábitos razoáveis. Precária consistência de um mundo onde uns chegam no mais alto sem subir nenhuma escada. Mundo onde diálogo é quando ninguém dá ao outro a palavra.
Perguntas podem ser feitas. De que vale o luxo sem prazer elevado. E a riqueza do mesquinho. Qual o sentido de o inteligente ser grosseiro e o poderoso, arrogante. Humor virar um horror. Assim como a beleza verdadeira contém decência, moralista desonesto é indecente.
Carro elétrico parece louvável, mas a produção da bateria não é elogiável. A China gosta do Ocidente para vender mercadoria e fazer proselitismo da riqueza sem democracia. Com o narcotráfico infiltrado na política a Polícia Federal perceberá que arsenal é mais relevante que arma publicitária de batizar operação em latim. Ainda que se enxerte virtude nos juízes solitários é um retrocesso de civilização negar à sociedade os tribunais colegiados. Tolerem a salada classificatória da obsessão identitária sabendo que é simétrica, à direita, à pauta moralista. Louve os poderosos, desde que compreenda bem os seus propósitos.
Filosofia, conceito e convicção não se prestam a exibição. Há uma faceta burlesca no estardalhaço do Parlamento quando faz o que não pode ser feito. Reuniões homogêneas e imediatistas só se instalam se os anfitriões podem fazer do convidado mercadoria e especulação para ganhar alguma coisa. Como não prosperar a preguiça em sociedade interesseira como um pesque-pague? O caráter mercantil e bajulador de tantos encontros mostra, como no teatro, que todos podem sorrir e ser gentis e continuarem a ser patifes, pois, no fim, somente os escolhidos prosperam.
Em tempos assim colegiais, o histrionismo de alguns, especialmente dos mais teatrais e mundanos, procura propagandear que tem relações mais próximas para influenciar o poder, como ancestrais de nobres que conseguem manter suas carruagens. A televisão, que diante da internet perdeu a maturidade sem se tornar mais jovem, é mestre em se fazer íntima do entrevistado poderoso, como se quisesse, pelo tratamento indevido e o tom inadequado, purgar os pecados de sua falta de autossoberania. A entrevista atual fascina de duas formas. Se for esculacho contra quem já está no chão, a covardia alimenta a imaginação do revoltado enrustido, mestre em breves objetivos e sem atos claros e sentimentos genuínos sobre hierarquia e poder. Se for pendor para a amizade com quem está por cima, é bom lembrar que a decência, que nunca conversou bem com a vaidade, conversa pior com a informalidade diante do poder. A essência de uma entrevista não é o deslumbramento da relação entre entrevistador e entrevistado, mas das conexões amarradas que exponham os dois a lapsos imperdoáveis e esclarecedores.
Quando todos reclamam a mais incondicional estima, a consequência mais perniciosa é o controle. O sofrimento não é uma objeção à vida. Fatos, dados, nomenclatura têm sido artifícios na apresentação das questões modernas para alcançar e explicar angústias humanas. É preciso aceitar inclusive a incompreensão, na terapia, na profissão e no afeto. Há fraqueza e inconsistência para todo lado e nenhuma ênfase corrige má-fé ou técnica desorientadora. A era digital como poder é a escravidão moderna e nela tudo conspira para separar, deprimir, hipnotizar e oprimir as pessoas por rótulos, etiquetas e imitação.
Ninguém deve pretender ser tudo para todos. Nem abusar da ansiedade usando de ironia que, segundo o professor greco-americano A. Nehamas, “muitas vezes, consiste em comunicar ao público o que se passa em nosso interior que não pode ser, absolutamente, revelado. Além disso a ironia deixa em aberto a questão relativa à nossa própria capacidade de perceber o que se passa”.
As tendências espirituais da nossa época não são boas. Lisonjear a vaidade; tratar mármore como argila; ter alegria sem felicidade; ser superficial e sentir tudo fácil demais de se lidar; indolência frente ao futuro; ansiar sair do tumulto com o lema: bem viveu quem bem se escondeu. O juízo do que é bom é muito mau, midiático e tem hoje a natureza e a circunstância das loterias. Como também são as discrepâncias inacreditavelmente evitáveis. Que tenhamos um feliz Ano-Novo.
*
SOCIÓLOGO. CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.