Menos de um ano depois de ter anulado jurisprudência de 1973 que legalizou o aborto nos EUA em nome do direito das mulheres à privacidade, que não está explícito na Constituição do país, mas é amplamente reconhecido na sociedade, a maioria conservadora da Suprema Corte proibiu o uso de cotas raciais como critério de acesso ao ensino superior.
Dias depois, os “justices”, como são chamados os ministros do Supremo dos EUA, derrubaram um programa de anistia parcial da dívida contraída por estudantes para que pudessem cursar a universidade, instituído pelo atual governo. Além disso, eles confirmaram a validade da ação movida por uma designer de websites que alegava sua crença religiosa no casamento entre um homem e uma mulher para se recusar a produzir um website para casais do mesmo sexo. Neste caso, os juízes exibiram claramente suas convicções ideológicas, e não seu apego à Constituição e às leis, ao decidir sobre uma ação hipotética, pois a peticionária pretendia se precaver quanto à possibilidade de ser constrangida pelas leis do seu Estado a criar um website que contrariasse suas crenças pessoais.
Os seis juízes conservadores da Corte – três deles nomeados por Donald Trump – continuarão a empurrar os EUA para a direita. Do outro lado, Ketanji Brown Jackson, juíza preta que o presidente Barack Obama alçou ao Judiciário federal e seu sucessor, Joe Biden, elevou ao Supremo no ano passado, mostrou em seu primeiro ano na Corte que não se intimidará ante a ofensiva conservadora nem deixará de compor alianças pontuais com adversários, como já fez mais de uma vez.
Apropriadamente, Jackson começou seu mandato ocupando a cadeira mais à esquerda do presidente do tribunal, John Roberts, que se senta ao centro da mesa retangular do tribunal, ladeado pelos “juízes associados”, quatro de cada lado, dispostos por ordem de antiguidade de suas nomeações.
Os especialistas acreditam que Jackson, de 52 anos, terá em Clarence Thomas, também preto, de 75 anos, seu maior adversário. Os dois magistrados, ambos filhos de pais pretos, são casados com brancos e formaram-se em Direito em universidades de elite – Harvard e Yale, respectivamente. Mas é imenso o fosso que os separa, no conteúdo e na aspereza dos argumentos que apresentaram na decisão da semana passada sobre cotas raciais.
Ainda que concordando com o objetivo das políticas antissegregacionistas, os dois magistrados mostraram que têm visões antagônicas sobre segregação racial e como enfrentá-la. Em linguagem direta, pouco usual entre juízes, Thomas criticou Jackson pessoalmente na decisão que tornou ilegal o uso de cotas raciais. “Da maneira como ela vê as coisas”, escreveu ele, “estamos todos inexoravelmente aprisionados numa sociedade fundamentalmente racista, em que o pecado original da escravidão e a submissão histórica dos americanos pretos continuam a determinar nossas vidas hoje”, escreveu ele. O juiz fustigou, em especial, a defesa feita por Jackson da ação afirmativa, que descreveu como panaceia na qual a sociedade aceitaria, sem fazer perguntas, “a visão de especialistas da elite empenhados em distribuir recursos da sociedade segundo um critério racial” para equalizar as oportunidades. Em sua longa e detalhada réplica, a juíza reduziu os argumentos de Thomas a “um prolongado ataque a uma discordância sobre a qual não escrevi”.
Jackson agregou que ela e Thomas não discordam sobre a história e os fatos da disparidade racial nos EUA. Mas, segundo a juíza, Thomas, hoje o decano do Supremo americano, “está persuadido de que a realidade derivada dessa disparidade não tem peso numa avaliação justa do sucesso individual”, que, segundo ele, é o avesso da tese da vitimização dos descendentes de escravos, que o juiz sempre rejeitou e contesta apontando para as bem-sucedidas carreiras profissionais dos pretos e de outras minorias, como os latinos e os asiáticos.
A visão de Jackson, escreveu Thomas, manteria os negros “aprisionados perpetuamente numa casta inferior”. O debate é antigo e só se esgotará – se um dia se esgotar – quando os diferentes grupos raciais realizarem o sonho sobre o qual o líder do movimento pelos direitos civis, Martin Luther King, falou 60 anos atrás em seu mais importante discurso, de um dia ver seus quatro filhos julgados não pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.
É um sonho ainda distante, mas menos distante do que já foi, como provam a ascensão de Katanji Jackson, Clarence Thomas e de milhares de pretos americanos a posições de liderança na política, nas ciências e nas artes.
A eleição presidencial do ano que vem será um marco importante nesta difícil mas inevitável trajetória. Os dois principais contendores são políticos idosos. O presidente Joe Biden, de 80 anos, e seu antecessor, Donald Trump, a caminho dos 78, representam visões opostas, fato que limita o espaço e a capacidade do próximo ocupante da Casa Branca para exercer a já declinante liderança dos EUA num mundo transformado pela globalização, realidade que os americanos relutam em aceitar.
*
JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE DO WILSON CENTER, EM WASHINGTON
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.