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Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Opinião|Trump, uma ameaça à democracia

Teatro de absurdos não respeita fronteiras nacionais. Ex-presidente é um exemplo a ser repudiado por seus vizinhos nas Américas

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Alucinado ante a perspectiva de perder a eleição presidencial de novembro para a vice-presidente Kamala Harris, filha de pai jamaicano e mãe indiana, o ex-presidente Donald Trump vem dando crescentes sinais de instabilidade emocional e descontrole. Desorientado pela solene surra que levou da ex-senadora e ex-secretária da Justiça da Califórnia no primeiro e único debate da campanha, na semana passada, Trump entrou na reta final da disputa diminuído por sua incapacidade de manter uma postura condizente com a dignidade do cargo que pleiteia.

Um mal disfarçado racista, o ex-presidente parece ter-se convencido de que será salvo por seu conhecido talento para falsear fatos, inventar realidades e partir para a ignorância. Seu mais recente alvo, revelado no debate com Kamala, são imigrantes haitianos recebidos legalmente há mais de três anos em Springfield, Ohio, para trabalhar na indústria, comércio e serviços e contribuir para o bem-estar da comunidade local. Sem apresentar provas, Trump acusou-os no debate com Harris de estar roubando os gatos dos vizinhos e os gansos de um parque da cidade para comer. As autoridades locais, a maioria composta por republicanos, disseram não ter conhecimento de tais fatos. Mas isso não impediu que uma milícia de extrema direita, os Proud Boys, aparecesse em Springfield na última quarta-feira desfraldando bandeiras trumpistas ou que o próprio Trump anunciasse uma visita à cidade proximamente.

Esse teatro de absurdos não respeita fronteiras nacionais. No pacato Canadá, o outrora festejado primeiro-ministro Justin Trudeau, filho e herdeiro do mais influente governante do país no século passado, perdeu o rumo e deve perder as próximas eleições em outubro do ano que vem, se durar até lá. Seu eleitorado se cansou, depois de nove anos de governo.

No México, o popular presidente Andrés Manuel López Obrador passará o posto no mês que vem para sua protegida e sucessora, Claudia Sheinbaum Pardo, ex-governadora do Distrito Federal e primeira mulher eleita presidente de um país de forte cultura machista. Mas Sheinbaum terá que lidar com um presente de grego deixado pelo seu tutor. Decidido a manter sua influência, o quase ex-presidente propôs semanas antes de deixar o cargo uma reforma radical do sistema judiciário, promovendo a eleição popular de juízes federais, e embaralhou as cartas.

A Venezuela continua a afundar depois da eleição presidencial ganha pela oposição, mas descaradamente tungada pelo ditador Nicolás Maduro. Sobre a Argentina do histriônico Javier Milei, melhor não falar.

E no Brasil, salvo da catástrofe deixada pelo despreparado Jair Bolsonaro graças ao retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto, o futuro não é promissor. Faltam ainda dois anos para a próxima eleição presidencial, mas o governo Lula, determinado a ressuscitar seus delirantes planos de liderança internacional, enfrenta oposição de um Congresso Nacional aberto ao aluguel de legendas, resistência num Judiciário mais interessado nos privilégios reservados aos seus membros e o personalismo de membros do Supremo Tribunal Federal.

O primeiro debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, a maior e mais rica cidade do País, desandou numa inusitada baixaria que teve cadeiras voando no palco e palavrões trocados entre dois candidatos inviáveis – um ex-radialista especializado em explorar crimes e escândalos e um falastrão que se autoinventou na internet sem jamais explicar a que veio.

Nos EUA, a presença de Trump na disputa é garantia de continuação da baixaria, ainda mais se as pesquisas de opinião continuarem a sinalizar o favoritismo de sua rival democrata. Se as eleições fossem hoje, a vice de Joe Biden levaria a melhor tanto na contagem do sufrágio popular quanto na dos 538 votos no Colégio Eleitoral — relíquia herdada dos fundadores do país, quando os Estados Unidos eram apenas 13, e não meia centena como hoje, a comunicação dependia da velocidade dos cavalos e fazia sentido conferir peso maior aos Estados menos povoados.

Isso posto, salvo uma vitória retumbante de Kamala, desejável mas improvável, o pleito ficará vulnerável a contestações que podem extravasar para as ruas e arruinar a reputação dos EUA como democracia multirracial estável e confiável. Mas há uma alternativa diferente, na qual as vozes moderadas e mais sensatas dos dois partidos e dos líderes dos estamentos empresarial, acadêmico e militar sejam ouvidas e convençam a maioria dos americanos a arquivar o trumpismo e seguir na construção de “uma união mais perfeita”, como prometeram os fundadores do país no documento em que declararam a independência dos EUA do império britânico. Conto da carochinha? Pode ser, mas foi com base nesse conto e nos valores humanistas e liberais que o inspiraram que os Estados Unidos se tornaram o mais poderoso país do planeta e foco de atração de povos oriundos de todos os cantos do mundo em busca de prosperidade, progresso e felicidade. É isso o que está em jogo nas eleições de 5 de novembro.

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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE DO WILSON CENTER, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ EM WASHINGTON

Opinião por Paulo Sotero

Jornalista, é pesquisador sênior do Brasil Institute no Wilson Center, em Washington

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