“Como os pulmões precisam de ar, o coração precisa de sangue e o estômago precisa de alimento – e não como um bêbado precisa de álcool, um viciado precisa de drogas e um diabético precisa de insulina –, uma economia moderna pode, em alguns momentos, precisar de déficits fiscais e uma dívida pública crescente e, em outras épocas, precisar de superávits fiscais, obtidos através de redução de gastos e/ou aumento de tributação, para destinar recursos à necessidade de investimento, combater a inflação e reduzir a dívida pública.” (Paul Samuelson). A metáfora, distinguindo necessidades reais daquelas de outra ordem, tem relevância para o Brasil, onde os tipos de necessidades se confundem. E no qual há cerca de três décadas as despesas primárias do governo federal cresceram a uma taxa anual superior ao crescimento do PIB, passando de 11,8% do PIB, em 1991, para 19,9%, em 2016 (20,2% em 2021).
Isso mostra que temos um problema estrutural de demandas por maiores gastos públicos, sobre o qual muito já escrevi neste espaço. Esta pressão exige difíceis escolhas, seleção de prioridades, avaliação de programas/projetos e mudanças institucionais significativas envolvendo reformas na área tributária e de administração pública e, certamente, a definição de regras fiscais críveis que tenham capacidade de conferir previsibilidade no médio e no longo prazos à sustentabilidade das finanças públicas no País. Definitivamente, não é o que temos no momento.
Para muitos o encaminhamento deste problema é uma questão de natureza político- ideológica. Política e econômica sempre será, mas Felipe González, por quase 14 anos primeiro-ministro da Espanha redemocratizada, afirmava que “o grande problema da ideologia é que ela obscurece o debate de ideias sobre a ação do poder público, ao tratar como grandes questões políticas e morais problemas específicos que deveriam ser enfrentados como questões de eficiência do setor público, quando não há diferenças de vulto sobre os objetivos a alcançar, e sim sobre as formas mais eficazes de fazê-lo”.
Como exemplo, vale uma citação de texto recente: “Se nada for proposto e aprovado para estabelecer fontes de receita e critérios perenes para a despesa, permanecerão a indefinição e a incerteza em relação ao cenário fiscal. O resultado será instabilidade política e econômica, baixo crescimento, casuísmo fiscal e, pior, a perpetuação da pobreza que há tempos impera no País”. Assim conclui o texto publicado na página 3 da Folha (7/12) escrito por Débora Freire, Monica de Bolle, Fábio Terra, Flávio Ataliba, Marco Brancher e Nelson Marconi Por um novo regime fiscal no Brasil, que se junta a vários outros trabalhos que apontam na mesma direção. Há espaço para convergências, dadas preocupações compartilhadas. Como, por exemplo: “É fundamental que a nova regra fiscal seja realista, transparente e de operação simples e compreensível. Deve ter uma meta de gastos que busque uma referência de patamar de dívida pública de médio prazo. A trajetória da dívida é uma referência, não um teto; ela deve ser não vinculante. A referência não é um limite intransponível, mas um ponto de chegada desejado”.
Outro exemplo deste mesmo artigo: “O novo regime precisa também de elementos acessórios, como monitoramento, avaliação e revisão permanentes de gastos”, (...) o que “pode colaborar, em muito, para garantir a evolução do gasto primário compatível com uma referência de trajetória da dívida”. Este exemplo me lembrou que, em entrevista coletiva dada em novembro de 2014, logo após sua reeleição, Dilma Rousseff afirmou: “Ao longo do governo, você descobre que várias coisas estão desajustadas. Várias contas que podem ser reduzidas, (...) o que vamos tentar é um processo de ajuste em todas as contas do governo, vamos revisitar cada uma e olhar com lupa o que dá para reduzir, o que dá para tirar”. Surpreendente declaração para alguém que naquele momento já vinha de cinco anos à frente da Casa Civil e quase quatro anos como presidente da República. Mas a sugestão de Dilma, ainda que nunca implementada, permanece relevante para o governo recém-eleito, que não deveria desperdiçar a oportunidade sugerida ao longo dos seus próximos quatro anos. E transformando o tema em política permanente.
Quero concluir este artigo com uma observação de André Lara Resende: “O Estado só pode criar poder aquisitivo sem pôr em risco o sistema de contabilidade da sociedade quando há recursos passíveis de serem mobilizados para o aumento da produção de bens e serviços. Tais recursos podem advir tanto da capacidade instalada (mas ociosa por insuficiência de demanda), quanto da capacidade potencial – mão de obra, equipamentos, tecnológica e organizacional – incapaz de ser mobilizada por falta de crédito. No primeiro caso, com capacidade instalada ociosa, o Estado pode atuar de forma anticíclica para estimular a economia. No segundo caso, o da capacidade potencial não efetivada, o Estado deve atuar como credor, mobilizador e viabilizador das potencialidades do crescimento de longo prazo”. Prefiro “poderia ou deveria atuar”, sempre lembrando a observação de Felipe González e muitas de nossas próprias experiências nesta área.
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ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM
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