É corrente em variados setores da sociedade a percepção de que o Congresso adquiriu um poder extraordinário sobre o Orçamento da União nos últimos anos – em grande medida, um poder autoconcedido. Desde 2015, quando foi promulgada a Emenda Constitucional 86, que tornou obrigatório o pagamento de uma parte das emendas individuais, o Congresso tem usado e abusado da criatividade para ampliar as vias de acesso aos recursos orçamentários, culminando em uma aberração antirrepublicana chamada “orçamento secreto”, esquema revelado por este jornal em maio de 2021.
Por motivos que vão do apetite virtualmente insaciável dos parlamentares por recursos públicos à debilidade política de presidentes da República que não conseguiram – ou não quiseram – se impor à usurpação de suas prerrogativas de chefe de governo, é fato que deputados e senadores determinam onde e como são gastos bilhões de reais por meio da indicação de emendas parlamentares de todo tipo, não raro sem transparência e sem que a tanto poder corresponda a devida responsabilização. Eis o retrato daquilo que por aqui se convencionou chamar de “parlamentarismo branco”, “às avessas” ou coisa que o valha.
A percepção sobre esse avanço do Congresso sobre o Orçamento, evidentemente, não só tem os dois pés fincados na realidade, como ainda pode ser medida. Um estudo realizado pelos economistas Marcos Mendes, pesquisador do Insper, e Hélio Tollini, ex-secretário do Orçamento Federal, ao qual o Estadão teve acesso, revelou que o caso do Brasil não encontra paralelo em 11 países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo que reúne a maioria das nações mais ricas do mundo e que promove padrões internacionais de boa governança.
Para dar a dimensão de quão sui generis é a apropriação do Orçamento por deputados e senadores brasileiros, o porcentual de recursos destinados às emendas no País é quase o triplo do resultado aferido por Mendes e Tollini ao analisar o caso da Alemanha, segunda colocada no ranking. Aqui, as emendas parlamentares representam 24% das despesas discricionárias do governo federal, enquanto na maior economia da Europa o total é de apenas 9%.
De acordo com o estudo, do início de 2021 até agora, os parlamentares dispuseram de nada menos que R$ 131,7 bilhões por meio de emendas, sejam as individuais, de relator – base da primeira versão do “orçamento secreto” –, de bancada ou de comissão. Esse valor é 87% maior do que o destinado por deputados e senadores para seus redutos eleitorais no quadriênio anterior (2017-2020). “A forma como o Legislativo brasileiro atua no processo orçamentário é inusitada e (...) muito superior ao observado nos demais países”, sublinharam os autores do estudo. “Não se justifica a expansão das emendas”, prosseguem Mendes e Tollini, “sob o argumento de que ‘em todo mundo é assim’.”
Ainda que pudessem ser escrutinadas com absoluta transparência, como determina a Constituição, e direcionadas, de fato, para o financiamento de políticas públicas capazes de mudar sensivelmente a realidade local dos municípios supostamente atendidos por seus autores, as emendas parlamentares, nessa proporção, já seriam uma excrescência pela evidente afronta ao princípio republicano da separação de Poderes. Tudo é ainda pior porque transparência não há, haja vista a faina do Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar moralizar essa orgia com recursos dos contribuintes há dois anos.
Com toda razão, muito tem sido cobrada do governo federal, inclusive por este jornal, a apresentação de um plano de corte de gastos digno do nome, vale dizer, robusto o bastante para reequilibrar as contas públicas, conter a inflação e favorecer a redução dos juros. Mas é forçoso lembrar que o Orçamento público é da União – não é o orçamento do Executivo, do Legislativo nem do Judiciário. Todos os Poderes devem dar sua cota de contribuição à responsabilidade fiscal, da qual depende o bem-estar de milhões de brasileiros. O Congresso, porém, finge que nada tem a ver com isso, alheio que está à realidade do País.