Já se examinou aqui o significado positivo da parceria entre o presidente Lula da Silva (PT) e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), no amparo à população atingida pelas chuvas que desalojaram e mataram dezenas de pessoas no litoral norte do Estado durante o carnaval (Espírito republicano, 26/2/2023).
Tal parceria sobressai também porque, ao ultrapassar divergências políticas salientes em nome de uma questão de interesse público, o comportamento de Lula e Tarcísio sugere que não estamos condenados à polarização que marcou a eleição presidencial do ano passado.
Como todos nos lembramos, para uma parte do eleitorado contava muito mais a afeição ou o ódio que se nutria por Lula ou Bolsonaro do que as realizações dos candidatos enquanto presidentes da República. Para esses eleitores, mais importante do que aquilo que os dois fizeram na Presidência do País era o fato de tratar-se de Lula (“pai dos pobres” ou “ex-presidiário”) ou de Bolsonaro (“mito” ou “genocida”).
A conduta de Lula e Tarcísio diante da tragédia climática paulista acena a possibilidade da superação desse tipo de polarização – de natureza muito mais afetiva do que racional – em favor de posicionamentos políticos mais atentos às efetivas prioridades do País. Espera-se, assim, que esses dois políticos sejam avaliados pelo que fizerem em seus governos, não por quem “são”, e que estejam novamente unidos nas questões que interessarem ao Estado de São Paulo.
Mas é importante registrar, por outro lado, que a desejável superação da polarização que consome o debate político do País não deve trazer consigo o apagamento das diferenças políticas entre nossos representantes. Ao contrário, a democracia é feita justamente das diferentes visões do Estado e da sociedade defendidas por eles; daí, aliás, os projetos políticos que nos são apresentados a cada eleição.
Por isso, devemos estar atentos a episódios como o da eleição de Arthur Lira para o comando da Câmara dos Deputados. Ali, nada menos do que 20 dos 23 partidos políticos com representação na Câmara formaram um vitorioso blocão para a disputa da presidência da Casa – bloco que contou tanto com o PL de Bolsonaro quanto com o PT de Lula.
Se esse blocão, de um lado, pode ser interpretado positivamente “como um sinal de que o presidencialismo multipartidário voltou a agregar os interesses entre o Executivo e o Legislativo”, como notou o cientista político Carlos Pereira em recente coluna no Estadão, de outro lado, conforme acertadamente notou o colunista, o presidencialismo de coalizão “se qualifica com a existência de partidos e parlamentares que estejam dispostos a ‘comer pão e água’ na condição de oposição”.
Essa aparente indistinção entre os partidos pode ter implicações negativas bastante conhecidas. Por exemplo, ela foi um dos fatores que mobilizaram a população nos grandes protestos de 2013, que tinham como um de seus lemas a rejeição aos partidos políticos. E, ainda hoje, formam-se no Brasil aquilo que Norberto Bobbio qualificou de “partidinhos improvisados”, destinados a desaparecer “sem deixar rastros”, posto que “não têm nem a pretensão nem a ambição de ser centrais”, mas apenas “centristas”, isto é, “prontos a se voltar à esquerda ou à direita de acordo com o vento que sopra”. Tanto o blocão que uniu PL e PT para eleger Arthur Lira (que não é um Ulysses Guimarães) ao comando da Câmara quanto a composição parlamentar do novo governo Lula, que já conta com parlamentares da suposta oposição em suas fileiras, conferem certa atualidade ao comentário de Bobbio, no livro Contra os novos despotismos.
Moral da história: é preciso superar a polarização vigente no Brasil para privilegiar iniciativas que contribuam com o seu desenvolvimento independentemente da corrente ideológica (ou da pessoa) de que provenham. Ao mesmo tempo, é preciso que o sistema político ofereça diferentes projetos para o País e seja fiel a eles. Do contrário, os cidadãos não contarão com alternativas políticas reais, o que só é bom para os populistas.