Ao julgar uma ação impetrada há 17 anos por um partido político que já não existe mais, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional, por 7 votos contra 2, o dispositivo legal que proíbe as rádios comunitárias – que não se confundem com as rádios piratas – de veicular programas doutrinários de caráter religioso, filosófico, partidário ou ideológico. A proibição constava de um parágrafo da Lei n.° 9.612, que instituiu há duas décadas o Serviço de Radiodifusão Comunitária.
Com uma cobertura restrita a um raio de apenas 1 km a partir da antena transmissora, as rádios comunitárias são emissoras mantidas por associações e fundações legalmente constituídas, sem fins lucrativos, com sede na localidade da prestação de seus serviços. Pela Lei n.° 9.612, elas devem ter uma programação pluralista, sem qualquer tipo de censura, e que contemple informação, lazer, manifestações culturais, artísticas e folclóricas, sem discriminação de raça, religião, sexo e condições sociais.
Além de obrigá-las a prestar serviços de utilidade pública, a Lei n.° 9.612 determina que essas rádios sejam abertas às opiniões, reivindicações e reclamações de todos os habitantes da região atendida. E permite que recebam patrocínio comercial, desde que os anunciantes sejam estabelecimentos situados na área da comunidade atendida. A função de uma rádio comunitária é difundir a cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade. Uma das poucas restrições que o texto legal impõe é a atividade que classifica como “proselitismo”.
Foi justamente essa restrição que teve a inconstitucionalidade arguida pelo antigo Partido Liberal (PL), precursor do Partido da República (PR). A agremiação alegou que, em seu sentido léxico, proselitismo não é doutrinação, mas apenas uma atividade voltada à conversão de pessoas, inclusive no plano religioso. Relator da ação, o ministro Alexandre de Moraes votou contra o recurso, alegando que as rádios comunitárias deveriam ser neutras, por serem uma concessão do Estado. Também afirmou que, ao concentrar sua atuação na defesa de uma ideia única, essas emissoras estariam agindo de modo sectário, afrontando o princípio do pluralismo consagrado pela Lei n.° 9.612.
O argumento do relator foi endossado pelo ministro Luiz Fux, mas acabou sendo rejeitado pelos demais ministros que votaram (Dias Toffoli não participou da sessão e Gilmar Mendes se declarou impedido). Segundo eles, como proselitismo é um termo muito vago, ao proibi-lo a Lei n.° 9.612 colidiu com a liberdade de pensamento, criação, expressão e informação prevista pela Constituição, desde que não seja exercida incitando ódio e discriminação social e racial.
“O direito à liberdade de expressão abrange, necessariamente, uma dimensão social que engloba o direito de receber informações e ideias. Da mesma forma, a liberdade de pensamento inclui o discurso persuasivo e o uso de argumentos críticos”, disse o ministro Luís Edson Fachin, acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Cármen Lúcia. “No mundo das redes sociais, em que cada um pode se encontrar em seu nicho ideológico, o risco de proselitismo é pequeno. Até porque eu confio na possibilidade de se desligar o rádio ou mudar de estação, caso ela não atenda à demanda que cada um tem em relação aos meios de comunicação”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso. “Proibir rádios de realizar discursos de convencimento é impedir a livre difusão de ideias, ainda que se cuide de ideia que possamos abominar, pois a liberdade de expressão não existe apenas para amparar as ideias com as quais concordamos, mas também para viabilizar e possibilitar o livre exercício de pensamento, inclusive de opiniões que contrariem as ideias majoritárias que se estabelecem numa dada formação social”, concluiu o decano da corte, Celso de Mello.
Custa crer que, apesar de sua importância, essa ação tenha tramitado por mais de uma década e meia na mais alta corte do País.