Fazendo eco a um sentimento geral de crescente preocupação com o comportamento de setores do Judiciário e do Ministério Público que têm extrapolado os limites de suas atribuições no embalo do apoio dos brasileiros ao eficiente combate à corrupção simbolizado pela Operação Lava Jato, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, professor da PUC carioca, manifestou em entrevista ao Estado a opinião de que por detrás da crise política que assola o País há “uma inteligência” que organiza “essa balbúrdia”, que é “provocada e manipulada com perícia”.
Na raiz dessa tendência de magistrados e procuradores de se comportar “com um ímpeto virtuoso, um ímpeto de missão” que nada tem a ver com sua função institucional e se manifesta “desse jeito destravado, sem freios”, está, na opinião do sociólogo, o fato de que “as instituições republicanas recuaram”, e “o presidencialismo de coalizão teve responsabilidade nisso, porque rebaixou os partidos, fez dos partidos centros de negócio”.
A análise do professor Werneck Vianna coloca o dedo na chaga de uma das mais evidentes e relevantes causas do agravamento da crise política, com séria ameaça ao equilíbrio entre os Poderes da República: tanto polêmicas decisões monocráticas recentes de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – que colocaram o Judiciário em conflito aberto com o Legislativo – como frequentes atitudes de magistrados e procuradores de instâncias inferiores, comportando-se como se o concurso público que lhes garantiu os cargos que ocupam lhes atribuísse também as mesmas prerrogativas de quem conquistou, pelo voto popular, um mandato parlamentar.
De fato, o desabrido messianismo de alguns membros do Judiciário e do Ministério Público revela que esses apóstolos da virtude se sentem como se lhes tivesse sido atribuída a nobre missão de, muito mais do que fazer cumprir a lei, resgatar o País do déficit moral que se observa de modo alarmante na vida pública. Nota, a propósito, o professor Vianna, que o Judiciário e o Ministério Público estão, “claramente”, sobrepondo-se ao sistema político e, com isso, ganhando mais poder: “Na defesa dos interesses públicos, reforçam suas conquistas corporativas”. Exemplo disso, cita, é que não se pode mexer na questão do teto salarial, que é frequentemente desrespeitado por magistrados e procuradores, numa demonstração de que até mesmo os agentes públicos responsáveis pela função judicante não se pejam de fazer com que, em benefício próprio, o exercício da vontade prevaleça sobre a lei.
Werneck Vianna chama de “tenentes togados” os juízes e procuradores que se desviam de sua missão constitucional de fiadores do império da lei. É uma alusão aos jovens militares que na década de 20 do século passado deflagraram o chamado Movimento Tenentista, que se rebelou contra as oligarquias que dominavam o poder na Velha República e foram responsáveis, entre outros movimentos, pelas seguidas sublevações que agitaram o País de 1922 até, afinal, a Revolução de 30. Os tenentes dos anos 20, segundo esclarece o próprio Vianna, “tinham um programa econômico e social para o País. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”.
A estrita observância dos limites entre o cumprimento da lei e o seu abuso é uma questão complexa e delicada que estimula a cada vez mais aberta confrontação de poderes, por si uma grave ameaça às bases institucionais da democracia brasileira. No momento em que a justa indignação nacional contra a corrupção que o Brasil herdou da era petista começa a alimentar a irracionalidade de paixões pretensamente moralizantes, o império da lei passa a ser visto como óbice e não como condição indispensável ao progresso e à justiça social. E é nessas águas turvas que vicejam, por um lado, os corruptos e os poderosos interessados na preservação de seu espaço e de seus privilégios, e por outro, os inimigos da liberdade que em nome da justiça social querem impor seu próprio modelo de divisão da sociedade entre opressores e oprimidos.