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Quando a prudência é ignorada

Nem a Receita Federal confia nas projeções de arrecadação do governo para 2024. Por razões técnicas e políticas, fica cada vez mais difícil acreditar no alcance do déficit zero

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Por Notas & Informações
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Entre as propostas que o governo anunciou para aumentar as receitas no ano que vem, uma das principais é a Medida Provisória (MP) 1.185, que limita a possibilidade de que empresas utilizem benefícios fiscais oriundos de um imposto estadual, o ICMS, para pagar menos tributos federais.

A MP foi editada após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter acertadamente acatado a tese apresentada pelo governo no processo. Brechas legais haviam expandido as possibilidades de uso do mecanismo por empresas, garantindo que elas deduzissem não apenas investimentos da base de cálculo dos tributos, mas até mesmo despesas correntes, corroendo permanentemente a base fiscal da União.

Na certeza de que tinha caminho livre após a vitória judicial, o governo enviou a medida provisória e previu que a proposta renderia R$ 35,3 bilhões em 2024. Consultados, especialistas em contas públicas ponderaram que essa projeção de receitas era demasiadamente otimista, uma vez que dependia da aprovação da Câmara e do Senado para se materializar. A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, por exemplo, estimou que a proposta renderia R$ 3,5 bilhões para a União – um valor relevante, mas que corresponde a apenas 10% do que o governo acredita poder arrecadar com a MP.

O que ainda não se sabia, porém, é que até mesmo técnicos da Receita Federal manifestaram dúvidas quanto às estimativas, cuja efetivação estaria atrelada a “diversos eventos futuros e incertos”. Reportagem publicada pelo jornal Valor revelou as ponderações feitas pelos servidores da própria Receita Federal, responsáveis pela projeção.

Em nota técnica obtida via Lei de Acesso à Informação, o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros (Cetad), Claudemir Malaquias, e os auditores fiscais Filipe Nogueira da Gama e Roberto Name Ribeiro mostram como haviam chegado ao número de R$ 35,3 bilhões, sem deixar de alertar que o cálculo era eminentemente técnico e ignorava a possibilidade de que os contribuintes reagissem à proposta – algo mais do que previsível.

“Frente a uma majoração de suas obrigações tributárias, buscarão ativamente minimizar tal fardo, seja por meios legais, como questionamentos judiciais e reformulação de estratégias tributárias, ou até ilegais, como o aumento da evasão ou da elisão fiscal”, diz a nota. “Dessa forma, recomenda-se cautela aos formuladores da política fiscal quando da utilização de tais estimativas, devendo-se ter em mente a possibilidade de frustração de parcela do aumento de arrecadação decorrente das medidas analisadas.”

O sensato conselho dos servidores da Receita Federal não foi suficiente para demover o excesso de confiança do governo quanto ao sucesso da proposta, tanto que a projeção foi incluída na Exposição de Motivos anexada à medida provisória, assinada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Ao apresentar a proposta de Orçamento do ano que vem, o ministro disse que a Receita tinha sido bastante conservadora na projeção de receitas – o que era verdade.

Haddad disse, no entanto, que o governo havia sido “muito fiel” às recomendações das áreas técnicas que embasaram a peça orçamentária. Não foi bem assim. Ao realismo manifestado pelos técnicos na projeção das receitas ordinárias recorrentes, o governo respondeu com a antecipação do pacote de medidas tributárias para arrecadar R$ 168 bilhões no ano que vem. Já seria algo bastante desafiador se o Executivo contasse com uma base parlamentar firme e confiável no Congresso, mas não é o caso.

Sem querer abrir mão do poder que conquistou durante a pandemia, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já deixou caducar várias medidas provisórias sem realizar qualquer debate sobre a pertinência de cada uma delas, bastando, para isso, impedi-las de tramitar. Para piorar, segundo a Coluna do Estadão, a Câmara está em obstrução há duas semanas e ficará sem apreciar nenhum projeto até que as indicações do deputado ao comando da Caixa sejam concretizadas.

Seja por razões técnicas, seja por motivos políticos, fica cada vez mais difícil acreditar no alcance do déficit zero em 2024.