A temperatura da chamada nova “guerra fria” subiu alguns graus. Em concerto, EUA, Reino Unido, Canadá e União Europeia (UE) impuseram sanções a quatro políticos e a uma organização de segurança chineses por seu envolvimento na opressão aos muçulmanos uigures em Xinjiang. A China retaliou com sanções a parlamentares, diplomatas, acadêmicos e um think-tank europeu. É a primeira vez, desde o massacre da Paz Celestial, em 1989, que os governos ocidentais realizam uma ação coordenada contra as ofensas aos direitos humanos na China. Caracteristicamente, em contraste com a velha guerra fria, as repercussões econômicas foram imediatas: o acordo de investimentos entre China e UE acertado em dezembro foi à berlinda e, nestas condições, a sua ratificação é praticamente inviável.
O choque ocorreu dias após EUA e China realizarem a primeira cúpula de alto escalão desde a posse de Joe Biden. Se havia alguma expectativa de que Biden resgataria a política de acomodação da era Obama, ela foi dissipada. Biden pode substituir o unilateralismo de Donald Trump por uma postura multilateralista, mas a voltagem da relação bilateral mais importante do mundo seguirá alta.
O secretário de Estado americano, Antony Blinken, deixou claro que Washington tomará medidas duras contra o assalto a Hong Kong, as atrocidades em Xinjiang e as ameaças a Taiwan. O chefe das Relações Exteriores do Politburo chinês, Yang Jiechi, retrucou que Pequim não tolerará intromissões da “assim chamada ordem internacional baseada em regras” em assuntos “domésticos”; propalou a superioridade da “democracia chinesa”; e acusou sarcasticamente os EUA de massacrarem sua população negra.
Dias antes, Blinken criticou Pequim em uma visita ao Japão e à Coreia do Sul, e participou da primeira cúpula da parceria “Quad” (com Japão, Índia e Austrália) destinada a conter a influência chinesa. Dias depois, ele foi a Bruxelas para reativar o fórum transatlântico EUA-UE sobre estratégias de confronto à China nos campos dos direitos humanos e segurança.
No ano passado os EUA aplicaram sanções a empresas chinesas por envolvimento na repressão aos uigures e recentemente impuseram sanções a corporações e políticos envolvidos na agressão a Hong Kong. Ainda que tardias, as sanções europeias marcam o início de uma coordenação multilateral. A agressão aos uigures – que envolve criminalização de práticas religiosas, prisões em massa, vigilância intrusiva e esterilizações forçadas – é um verdadeiro genocídio “cultural”.
Parlamentares europeus já pressionavam para condicionar o acordo comercial com a China a um compromisso contra ofensas a direitos fundamentais, como o trabalho forçado. As sanções desproporcionais da China acrescentam um novo complicador.
Do ponto de vista geopolítico esses atritos inflamam um trilema para as democracias liberais ante a ascensão da China: como assegurar as relações econômicas, evitar a guerra e defender os direitos fundamentais?
Blinken resumiu as regras do jogo: há áreas nas quais os EUA devem confrontar a China (como direitos humanos); outras nas quais devem competir (na economia e tecnologia); e outras nas quais podem cooperar (como nas mudanças climáticas). A UE estabeleceu, em 2019, a sua própria fórmula: a China é a um tempo parceira, concorrente econômica e “rival sistêmica”. Mas as colisões recentes mostram que não é inconcebível uma espiral de hostilidades que mande esse concerto pelos ares.
Diferentemente da URSS, a China é uma superpotência econômica. Isolá-la, ainda que fosse desejável, é impossível. Mas a resignação às atrocidades do regime comunista é inaceitável. O trabalho das democracias deve começar em casa, criando anticorpos nas suas organizações políticas, econômicas e culturais contra as tentativas de interferência do totalitarismo chinês. Se conseguir revigorar suas instituições liberais, o Ocidente talvez possa inocular, com o tempo, a população chinesa com valores democráticos. Mas isso só poderá ser feito em conjunto. A coordenação transatlântica dos últimos dias é um sinal promissor nesse sentido.