Fiel a uma agenda de atraso, o presidente Lula da Silva baixou dois decretos, na quarta-feira, mudando pontos essenciais do Marco do Saneamento, que abrem caminho para disputas judiciais e maior risco de problemas no atendimento a populações em regiões carentes de abastecimento de água e esgoto, além de desestimular investimentos.
Um dos dois itens mais importantes alterados nos dispositivos legais é a permissão para que empresas estatais regularizem contratos precários. A nova lei do saneamento, de 2020, determina que prestadoras de serviços são obrigadas a comprovar que têm condições de fazer os investimentos necessários à universalização do fornecimento de água e esgoto dentro dos prazos legais. A primeira avaliação desse requisito mostrou que 20% dos contratos com municípios apresentaram irregularidades, entre 2021 e 2022 – são 1.113 cidades com esse problema. O decreto de Lula desfaz esse processo, e teme-se que os novos critérios, mais frouxos, beneficiem contratos considerados irregulares anteriormente.
A segunda alteração anunciada pelo presidente permite que companhias estaduais prestem seus serviços em microrregiões sem a necessidade de licitação, bastando uma autorização da entidade interfederativa do bloco regional, o que obviamente fere a Constituição. O tema já é alvo de intensa disputa jurídica, inclusive com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade levada ao Supremo Tribunal Federal pela associação que representa as concessionárias privadas, porque o governo da Paraíba já estava seguindo a norma agora determinada pelo decreto presidencial.
O Marco do Saneamento foi aprovado por uma larga margem pelo Congresso Nacional em 2020 e, diante disso e do ambiente aparentemente pouco propício a mudanças entre senadores e deputados, o governo federal decidiu impor as mudanças por decreto. Abre-se, dessa forma, a porta para novas disputas no Judiciário que podem atrasar ainda mais os necessários investimentos em saneamento.
Dados do Instituto Trata Brasil apontam para uma situação desalentadora nesse campo: o País ainda tem quase 35 milhões de habitantes sem acesso à água tratada, 100 milhões (quase metade da população) sem coleta de esgotos e apenas 46% do esgoto é tratado. E mais: doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado foram causa direta de quase 1% das mortes no Brasil entre 2008 e 2019. Foram 135 mil óbitos nesse período, uma média de 11,2 mil ao ano, de acordo com o IBGE.
Nos últimos anos, o setor privado demonstrou que tem interesse e recursos para mudar esse terrível panorama. No entanto, com os decretos de Lula, que mudam as regras do jogo com o jogo em andamento, há razões para esperar maior cautela da parte das companhias privadas diante do que pode se considerar uma concorrência menos igual. Até agora, as estatais, até por restrições fiscais, veem-se amarradas a orçamentos muito menores do que seria o necessário para melhorar o atendimento.
Entre 2010 e 2017, 15 empresas de saneamento estatais investiram em média R$ 7,4 bilhões ao ano, menos da metade dos R$ 20 bilhões determinados pelo plano nacional de saneamento. As exceções são as grandes estatais, como a Sabesp, que caminha para a privatização.
Ao divulgar as novas regras, o Palácio do Planalto explicou que é preciso evitar que serviços e investimentos sejam suspensos e que haverá “rigorosa fiscalização”, o que é obviamente uma piada de mau gosto. O palavrório mal esconde que o verdadeiro problema, para o governo, é a perspectiva de envolver investimentos privados e de reduzir a presença do Estado na área de saneamento básico, o que causa arrepios nos estatólatras petistas. Para essa turma, não interessa se as estatais, depois de décadas de atuação medíocre, foram incapazes de prover água limpa e tratamento de esgoto adequado para grande parte da população, mesmo com todo o tratamento privilegiado que tiveram. O que importa é que elas continuem existindo, servindo de cabide de emprego para os companheiros, em detrimento da saúde dos brasileiros pobres.