O Mercosul não poderia ter sido mais transparente sobre o quão “atrapado” está em suas próprias mazelas como na sua reunião de cúpula em Puerto Iguazú, na Argentina, encerrada no último dia 4. O documento final do encontro refletiu a dificuldade de o bloco tratar suas pendências históricas como união aduaneira e iniciar a urgente revisão de seus instrumentos para adequar-se às circunstâncias do comércio global. Nas entrelinhas, lê-se a urgente necessidade de sua profunda revisão.
O bloco não se esquivou somente de encarar seu processo de integração. Ao omitir diretivas sobre a conclusão do acordo com a União Europeia, a guinada que o pequeno Uruguai pretende impor aos sócios ao negociar com a China e a condenação ao regime autocrático da Venezuela, o texto final evidenciou o dissenso em temas cruciais. Perdido em solilóquios nacionais, o Mercosul abandona-se à progressiva fragilidade e ao questionamento de sua relevância.
A ausência, pela quarta vez, da assinatura do presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, no documento final foi emblemática. Não refletiu somente sua contrariedade com o veto dos outros três sócios à negociação do livre-comércio entre seu país e a China. Antes, expressou o mal-estar de um parceiro considerado desde sempre como “menor” com a integração comercial há décadas emperrada. O Uruguai, ao contrário de seus parceiros, se indaga sobre o quão válido é o Mercosul para o interesse nacional.
Ao sublinhar em seu discurso o fato de que os setores automotivo e açucareiro continuam excluídos do Mercosul, o presidente Lula da Silva tocou em uma negligência histórica. Não é a única. O comércio dentro do bloco não alcançou até hoje a fluidez imaginada em 1995, quando as regras do livre-comércio e da união aduaneira começaram a ser adotadas. Medidas técnicas escamoteiam o protecionismo entre os sócios.
Mas é na união aduaneira a maior fragilidade do Mercosul. A Tarifa Externa Comum (TEC), aplicada aos bens importados de países fora do bloco, foi relevante para a construção de um mercado cativo, em especial para a indústria brasileira. Mas, se no passado era comparada a uma peneira, tantas as brechas, agora não passa de um mecanismo ficcional. Em 28 anos, nunca houve uma reavaliação profunda para adequá-la aos atuais processos produtivos e comerciais. Exceções e reduções unilaterais das alíquotas levam à conclusão de que há quatro TECs nacionais. O instrumento serve apenas como referência ilusória para as negociações de livre comércio, como o acordo com a União Europeia posto em xeque agora por Lula.
O pacto é alvo de agressivos ataques do presidente Lula da Silva, que se agarrou à “inaceitável” proposta europeia sobre meio ambiente como meio de reverter a liberalização do mercado de compras governamentais. Lula assumiu a presidência do Mercosul neste semestre com a promessa de uma resposta “contundente” a Bruxelas. Não há uma palavra no documento de Puerto Iguazú sobre a gritaria brasileira.
Capítulo à parte, o tratamento do Mercosul ao regime venezuelano manteve-se incólume no documento final – apesar do empenho de Lula em trazer Caracas de volta à mesa dos sócios plenos. O país continua suspenso por suprimir a democracia e o Estado de Direito. Certo é que Lula foi mais comedido ao tratar da Venezuela e não se arriscou a repetir o que entende por democracia “relativa”. A moderação não o eximiu de contestações pelos demais líderes por sua defesa ao regime de Maduro.
Em Puerto Iguazú, celebraram-se os 25 anos da Cláusula Democrática do Mercosul – evocada para a suspensão da Venezuela. Tratou-se de um avanço simbólico do bloco em sua agenda além do comércio, que inclui o reconhecimento de diplomas e da contribuição previdenciária e uma infinidade de temas de cooperação. Não há dúvidas de que esse acervo de compromissos do mercado comum deve ser mantido e ampliado. Mas cabe aos quatro sócios atacar de uma vez por todas, e o quanto antes, as mazelas da integração comercial. Do contrário, o risco é de se perder tudo.