Com inúmeros problemas de ordem política, econômica e social a serem enfrentados depois de quatro anos de bolsonarismo, o governo de Lula da Silva decidiu ressuscitar uma discussão já superada sobre uma das pouquíssimas áreas em que houve notável progresso nos últimos anos. Segundo uma reportagem do Estadão, o Executivo estuda mudar um dos principais dispositivos do marco do saneamento para permitir que estatais estaduais possam prorrogar contratos com prefeituras – tudo à revelia da Constituição, que tem a licitação como regra na administração pública.
O pedido foi feito pela Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), e a secretária executiva da Casa Civil, Miriam Belchior, disse que propostas concretas serão discutidas na próxima semana. Como o marco do saneamento foi aprovado por ampla maioria no Legislativo em 2020, é improvável, passado tão pouco tempo, que haja clima para mudá-lo. A estratégia, portanto, é contornar a legislação por meio de decretos.
Desde que o marco do saneamento entrou em vigor, as licitações ampliaram a participação da iniciativa privada no setor. Para participar delas, é preciso comprovar prévia capacidade econômico-financeira para realizar investimentos. Sem caixa, muitas estatais não conseguem participar dos leilões, que dirá vencê-los. Por isso, as empresas públicas pleiteiam que o governo inverta o processo: querem estender os contratos que já possuem e obter um prazo maior para cumprir metas que nunca cumpriram; em paralelo, postulam acesso facilitado a financiamentos de bancos públicos para realizar as mesmas obras que já deveriam ter feito há décadas.
Quando há dúvidas sobre fatos, nada como os números para apontar quem tem a razão. O marco do saneamento tem como meta a cobertura de 99% da população com água potável e de 90% com esgoto até 2033. Para atingir esses objetivos, segundo estima a consultoria KPMG, são necessários R$ 750 bilhões em investimentos. Com o domínio histórico das estatais estaduais no setor, a cobertura de água potável atingiu 84,2% da população; 44,2% dos brasileiros vivem sem acesso à rede de esgoto; e, dos sistemas existentes, somente 50,3% recebem tratamento adequado.
Há um longo caminho a ser percorrido para dar fim a essa mazela social. Mais do que boas intenções, o setor privado tem demonstrado ter um fôlego financeiro para resolvê-la, algo que as estatais já provaram não ter. Entre 2010 e 2017, de acordo com o governo federal, 15 estatais de saneamento realizaram investimentos médios de R$ 7,4 bilhões por ano, menos da metade dos R$ 20 bilhões mínimos estipulados pelo Plano Nacional de Saneamento Básico.
Em dois anos de vigência do marco, 21 leilões foram realizados, com investimentos estimados em R$ 82,6 bilhões em 244 municípios das Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon). Os números falam por si sós. O que impressiona é a capacidade do governo de ignorá-los.