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Procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

Opinião|A cegueira da fama

Parcelas da sociedade, ao invés de repudiarem com vigor o crime de pessoas com alguma notoriedade, glamurizam-no

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Tentando fugir de flagrante de traição, há três anos e meio o MC Kevin faleceu no Rio ao despencar de uma varanda, interrompendo assim sua vida aos 23 anos de idade.

Sua mulher, a doutora Deolane Bezerra, circulava no showbiz como primeira-dama do funk, mas, a partir do infausto acontecimento, ganhou protagonismo no debate público como viúva traída, e foi ao estrelato da subcelebridade. Espalhafatosa, sempre ostentou luxo.

Fomos surpreendidos pela notícia da prisão de Deolane e de sua mãe, envolvidas com lavagem de dinheiro, no mundo das bets e em outros ilícitos.

Deixou claro que o status de celebridade venerada por mais de 20 milhões de seguidores fazia-a se sentir intocável pelas leis dos homens.

Isso se reforçou quando obteve a prisão domiciliar, mediante o compromisso de não se manifestar em redes sociais. Mas, ao ser libertada, publicou postagem, em razão do que o benefício foi revogado e ela retornou à prisão.

Não imaginou que a Justiça revogaria seu benefício, contando com a impunidade de seu ato afrontoso. Mais do que isso, insuflou as pessoas que a reverenciavam a protestar contra sua prisão, que foi classificada indevidamente por ela como abusiva e injusta.

Chamou a atenção a massa aglomerada na parte externa na prisão pedindo enlouquecidamente a libertação de Deolane, investigada por gravíssimos crimes. Pessoas deixaram o trabalho e outras deixaram suas famílias para lutar pela influenciadora digital, como se fosse questão de vida ou morte.

Não se importavam com a gravidade dos crimes ou com a consistência das suspeitas. O que importava era a amada Deolane – ela não poderia ficar presa, segundo elas, pois ela seria um ser acima do bem e do mal. Pareciam estar em transe.

Matéria veiculada no Metrópoles registrou que a família de Deolane pagou a fãs na porta do presídio, o que também deve nos trazer à lembrança a existência de um aquecido mercado de venda de seguidores para redes sociais.

Ou seja, as aparências podem enganar em relação à exata compreensão sobre aquelas presenças pró-Deolane, assim como sobre o total de seguidores ostentados, o que nem sempre é algo orgânico, podendo ser um número artificial e manipulado.

Isso não significa que os apoiadores de Deolane fossem todos contratados, nem que necessariamente seus seguidores tenham sido comprados. Mas a verdade é que hoje em dia essa compra é tida como algo natural.

E endeusar pessoas “famosas” envolvidas com o mundo do crime não é incomum. Fernanda Costa, por exemplo, filha de Fernandinho Beira-Mar, acaba de ser eleita como a décima vereadora mais votada em Duque de Caxias – Baixada Fluminense.

O goleiro Bruno, do Flamengo, foi condenado pelo homicídio de Eliza Samudio, sua ex-amante, que foi cruel e brutalmente morta e esquartejada há 14 anos, sendo as partes de seu corpo lançadas a cães que as devoraram.

O crime chocou a opinião pública, mas não impediu que número significativo de mulheres pedissem sua absolvição e demonstrassem o desejo de se casar com o famoso atleta assassino, que inclusive chegou a ser contratado por clube de futebol, mas que acabou rescindindo o contrato ante a repercussão negativa.

Algo parecido ocorreu no caso de Francisco de Assis Pereira, o “Maníaco do Parque”, condenado a quase 300 anos de reclusão por estuprar e assassinar diversas mulheres em São Paulo.

Parcelas da sociedade, ao invés de repudiarem com vigor e de forma uníssona o crime de pessoas com alguma notoriedade, glamurizam-no, apoiando e concedendo doses inaceitáveis de complacência social, como nos casos dos horrendos estupros cometidos por Cuca, Robinho e Daniel Alves, conhecidos jogadores de futebol, condenados por estupros praticados na Europa, cujas condutas não foram repudiadas de forma veemente e uníssona – comportamentos esperados e desejáveis.

É grave o rebaixamento ético que levou a Escola de Samba União Cruzmaltina a pensar em homenagear em seu samba-enredo no Rio o ex-governador Sérgio Cabral, do alto de seus 400 anos de reclusão por corrupção, que devemos relacionar à negação de saúde pública, escola pública a crianças pobres, saneamento básico, etc.

Temos grave déficit escolar e informacional, inclusive no âmbito da educação política. A plenitude da cidadania é utopia distante. Mesmo que a polícia prenda, que o promotor peça a condenação e que juiz sentencie, pela lei os acusados têm o direito de mentir impunemente.

Além disso, é fato notório que o poder econômico fala mais alto e quem tem muito dinheiro contrata os melhores advogados e dificilmente é alcançado pela lei e pela Justiça, como no caso do cantor Gusttavo Lima, implicado na mesma investigação de Deolane.

Lembremos que ele comemorou aniversário em festa VIP no seu iate milionário, na Grécia, com o ministro do Supremo Kassio Nunes e com o governador Ronaldo Caiado. E que, apesar de ter tido a prisão determinada pela Justiça, antes mesmo da tentativa de cumprimento do mandado sua poderosa equipe de advogados obteve revogação da ordem judicial.

Nossa escala de valores sofreu progressivo e profundo processo de erosão, e referências éticas são raridades cultivadas e mantidas por pouquíssimos. Como reverter este quadro e transformar a exceção em regra?

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’

Opinião por Roberto Livianu

Procurador De Justiça No MPSP, Doutor em Direito Pela USP, Escritor, Professor, Palestrante, É Idealizador e Presidente Do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

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