Iremos às urnas eletrônicas dentro de um mês, sem dispormos de código de defesa do eleitor nem de lei de responsabilidade eleitoral. Durante a campanha, deveria haver efetivo debate de ideias e propostas para que o eleitorado pudesse comparar o que cada candidatura apresenta e pretende. Mas novamente o que se tem em 2024 é o jogo baixo da desqualificação do adversário.
Em São Paulo, por exemplo, um candidato outsider, que traz saudade do Padre Kelmon, não apresenta nos debates qualquer espécie de proposta consistente, em campo algum das políticas públicas no âmbito municipal. Opta por mentir de forma acintosa. Agride, desabona, cria narrativas falsas para conspurcar seus adversários, sempre de olho no algoritmo das redes sociais – arena na qual se destaca.
Primeiro inventou que uma das candidatas foi a responsável pelo suicídio do pai e depois mentiu dizendo que outro deles consome entorpecentes, mas estava falando de um homônimo, fato do qual tinha consciência. Nunca se retratou. Já há pedidos de imposição de multas, de retirada do ar de conteúdos mentirosos e impróprios e até de cassação de sua candidatura.
Ainda que se tenha determinado a retirada de conteúdos e a suspensão de seus perfis das redes sociais, enquanto isso, à base do engodo, ele criou outros e forjou a versão da vítima perseguida. Pesquisas mostram seu crescimento de intenções de voto, mesmo sem histórico político, sem estar lastreado em qualquer projeto defendido no debate público. E mesmo diante da revelação por reportagens de que ele já foi condenado criminalmente como ladrão, por furto qualificado, não cumprindo a pena de quatro anos e cinco meses de reclusão em virtude da prescrição, apontada recentemente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) como grave fonte de impunidade do crime em nosso país.
A mentira aqui é direito dos acusados na esfera penal, sendo considerada ato de autodefesa. Nos Estados Unidos, por exemplo, acusado que mente ao ser interrogado pratica o crime de perjúrio. No Brasil ele fica impune, o que dificulta muito a colheita das provas e o trabalho diário de magistrados e membros do Ministério Público, e estimula comportamentos descomprometidos com a busca da verdade, busca esta que deveria nortear nosso processo penal.
Aos domingos, as filas são apoteóticas para ingressar nos sonhados 12 metros quadrados da Charlotte, abarrotados de bolsas, calçados e casacos superfakes das marcas mais desejadas pelos ávidos clientes: de Gucci à Prada, de Balenciaga a Louis Vuitton. Estamos falando de cópias praticamente idênticas aos produtos originais, com design muitíssimo próximo, o mesmo padrão de confecção. As peças custam valores mais altos que as réplicas comuns, pela alta qualidade. Mas, mesmo custando mais, ainda assim o valor pago é dezenas ou centenas de vezes inferior ao preço que seria pago pela peça na loja da respectiva grife.
Chamam a atenção as chamadas “porcelanas de luxo”: pratos e xícaras com o famoso logo da Chanel, com grande demanda e lista de espera, mas o item porcelana a maison Chanel jamais comercializou. Portanto, não estamos falando de imitação: é criação de produto falso que não existe, é apropriação de marca.
Corajosa reportagem de João Batista Jr., publicada na revista piauí de agosto, revela o submundo dos superfakes, mostrando que quantidade nada desprezível de pessoas bebe dessas águas, vive e pratica a deslealdade social naturalizada, de forma institucionalizada. Vive imersa na mentira comercializada, vivenciada como se fosse algo legítimo, aceitável e verdadeiro. Um faz de conta cometido sob o signo do ilusionismo, criando-se enganosa percepção geral de que estariam portando produtos originais, apresentando-se publicamente como se tivessem certo status, que na realidade não têm.
Essas pessoas circulam em shoppings, restaurantes, exposições e livrarias visando a induzir a erro os outros, imitam famosos e mesmo subcelebridades. São verdadeiros fraudadores da própria imagem, criando personagens fakes a partir de si mesmos para alimentar seus perfis nas redes sociais, numa verdadeira roda-viva da mentira, com objetivos às vezes de alpinismo afetivo, outras vezes de golpismo político ou financeiro, ascensão social ou até meramente por questões de ego mal resolvidas.
A ilicitude não é reprimida pelas forças de segurança, mesmo sendo de conhecimento notório onde estão estabelecidas as lojas, conforme documenta a densa e destemida reportagem – que aponta funcionarem nos mesmos locais há longo período, não sendo surpreendente se até policiais forem clientes. Ou seja, tudo reforça o caráter naturalizado da tolerância à contrafação, infelizmente só explicável pelo pagamento de propina a alguns, o que também se documenta na reportagem.
A lógica do mentiroso se baseia muitas vezes na estratégia atribuída a Joseph Goebbels, o pai da propaganda nazista: a mentira repetida à exaustão tende a se transformar em verdade pelo simples fato de ser humanamente impossível neutralizá-la totalmente. Resíduos da mentira, por mais forte que seja o desmentido, sempre permanecerão. Daí provém sua força avassaladora.
Nesse contexto, a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) determinando, em relação a emendas parlamentares, que o Congresso respeite regras constitucionais de transparência e o direito de acesso à informação representa um glorioso momento de alento em prol da verdade neste oceano desalentador de opacidade e mentira no qual nós nos temos afogado.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’
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