Na terça de carnaval passada, Edgar Ricardo de Oliveira estava inconformado por ter perdido certa soma apostada na mesa de bilhar, num bar em Sinop, em Mato Grosso. Apesar dos maus antecedentes por violência doméstica, tinha obtido indevidamente porte de diversas armas, como colecionador, e as ostentava nas redes sociais. Inclusive a poderosa espingarda calibre 12 (que atinge o alvo a 420 metros de distância em 1 segundo) que ele foi buscar na picape, depois das primeiras derrotas no jogo, junto com Ezequias Souza Ribeiro, que também se armou de pistola semiautomática. Com elas, executaram implacavelmente sete pessoas em dez segundos.
Em Jabalpur, na Índia, vem de 1875 a mais remota partida de snooker da qual se tem notícia, em período chuvoso, quando oficiais ingleses do regimento Devonshire passaram horas a fio ao redor de uma mesa de bilhar, havendo referências no sentido de ter a prática chegado ao Brasil no ano da proclamação da nossa República, em 1889.
Ocorre que nestes quase 150 anos o jogo de bilhar, ou sinuca, como chamam outros, popularizou-se e passou a fazer parte do cotidiano de entretenimento popular tupiniquim, nos mais poeirentos rincões deste país-continente chamado Brasil. Aposta-se dinheiro neste jogo e muitos pequenos botecos têm mesas de sinuca, que, para muitos brasileiros, é o único lazer do fim de semana.
Edgar resistiu à prisão e acabou morto em troca de tiros com as forças policiais. Ezequias entregou-se às autoridades dois dias depois, declarando, com certa dose de cinismo, ter poupado a oitava vítima, que poderia também ter assassinado, mas que estaria arrependido pela chacina, que incluiu um vendedor de frutas que entrou no bar para olhar futebol na TV e uma criança que acompanhava o pai – com ele foi morta.
É abominável a insignificância da vida humana: sete pessoas assassinadas pelo único fato de presenciarem as derrotas do assassino no bilhar. Grita a motivação absurdamente fútil da chacina. Tudo sinaliza selvageria, o que não é novidade para nós. A banalização das explosões violentas e desarrazoadas é acontecimento de repetição constante em nosso país.
Cabem algumas reflexões, para compreendermos melhor estes fatos e procurarmos um caminho para seu enfrentamento. Primeiro ponto: a distribuição massiva de armas para a sociedade civil, pelo aumento exponencial do número de Colecionadores, Atiradores Esportivos e Caçadores (CACs) nos últimos quatro anos, como o caso do atirador Edgar, de Sinop – onde Jair Bolsonaro sintomaticamente recebeu 77% dos votos no segundo turno.
As figuras jurídicas dos CACs foram banalizadas, chegando-se a ponto de “atiradores” serem surpreendidos com armas nos mais variados horários, alegando sincronizada e sistematicamente que estariam se dirigindo sempre para supostos “clubes de tiro”.
A qualquer hora do dia, da noite ou mesmo da madrugada, ainda que o respectivo veículo não esteja posicionado em direção aos respectivos locais quando das abordagens policiais, evidenciam-se a falsidade sistemática dessas versões e a inconveniência de tais autorizações como política pública, multiplicadas na total contramão do interesse público.
Dados de organizações como o Instituto Igarapé e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram de forma robusta que, nos últimos quatro anos, a adoção do armamentismo – eternizado na frase presidencial “todo mundo tem de comprar fuzil”, ao invés de “comprar feijão” – trouxe consigo aumento dramático dos números da violência e da criminalidade, e não sua desejável contenção.
Tanto que o Tribunal Superior Eleitoral, de forma extremamente sensata, prudente e estratégica, visando a preservar a paz no processo eleitoral de 2022, revogou as autorizações dos CACs nos dias anteriores às eleições, tendo em vista os crimes que atingiram atores envolvidos no processo eleitoral nas semanas anteriores ao pleito, diante do nível extremo de beligerância observado.
O segundo ponto a ser analisado é aquele que diz respeito à percepção social generalizada de impunidade, hoje em boa medida garantida por lei. E decorrente da própria dinâmica da distribuição de justiça, a partir de julgamentos reiterados, como o recente caso do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral.
Cabral teve contra si proferidas sentenças que somam mais de 400 anos de condenação pela prática de atos de corrupção em 23 processos criminais, e é réu confesso. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente determinou sua libertação sob a justificativa de que nenhum de seus processos foi julgado em definitivo.
O boleiro Robinho, condenado em definitivo a nove anos de reclusão por estupro na Itália, despreza a vítima e vive escondido, demonstrando certeza de que, estando no Brasil, a lei não o alcançará. Como centenas de outros abusadores, agressores e matadores de mulheres que circulam livres, antes ou depois de condenados.
São alguns exemplos da impunidade, impossíveis de justificar e que podem, de certa forma, contribuir para alavancar a criminalidade, fora de controle. A matança fria e cruel de Sinop foi oportunizada pela irresponsabilidade estatal armamentista e pela catastrófica impunidade nossa de cada dia. Seria um ovo de serpente?
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’
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