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Procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

Opinião | As entranhas e as patranhas do futebol

A imprensa se escandalizou com os anúncios de Textor, pois é possível estarmos diante de uma ‘fishing expedition’

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John Textor, ouvido na CPI sobre manipulação de apostas esportivas do Senado, é o empresário estadunidense que preside a sociedade anônima do futebol (SAF) dona do Botafogo, no qual fez investimentos milionários, e que no ano passado durante muitas rodadas liderou o Brasileirão.

Houve verdadeira perplexidade quando Textor (o Elon Musk do futebol, segundo o jornalista Juca Kfouri) anunciou categoricamente que alguns resultados específicos de jogos envolvendo times de destaque foram manipulados. Disse ter provas técnicas obtidas por inteligência artificial.

Não é a primeira vez que o tema vem à baila, com situações já investigadas e comprovadas de envolvimento de atletas (de times de divisões não principais) em esquemas de fraudes envolvendo casas de apostas.

Mas, nesse caso, chama a atenção o fato de Textor apontar o dedo com veemência especialmente para duas forças das mais relevantes do futebol brasileiro: Palmeiras (que venceu o Brasileirão 2023) e São Paulo (que conquistou a Copa do Brasil 2023). Sintomaticamente, ele não analisou jogos de seu Botafogo. Além disso, foi o próprio Textor quem contratou a tal empresa de perícias.

Dentro dessa lógica, a lei da delação premiada (12.850/2013), usada apenas como referência principiológica nesse caso, confere à palavra do delator credibilidade restrita, exigindo a complementaridade da produção da chamada prova de corroboração, a tal ponto, que na lei se prevê de forma categórica a vedação da condenação embasada exclusivamente na palavra do delator, prevendo nulidade.

O empresário afirma que nas tais partidas teria havido excessivo número de lances anômalos e isso bastaria para se chegar à conclusão de que teria havido fraude. Mas isso é apenas indício de fraude, não bastando, isoladamente, para demonstrar manipulação dos resultados.

Há a necessidade de verificar se houve correspondência entre a suposta expressiva repetição de anomalias em uma mesma partida e as apostas exatamente delas decorrentes, fato a ser constatado por relatórios das casas de apostas.

Vamos supor que se aponte que em tal jogo ocorram quatro reversões de laterais em relação ao time X, fato inédito para a equipe. E naquela data haja 1.000% de aumento das apostas na ocorrência de quatro reversões de laterais contra aquela específica agremiação. A soma dos dois indícios é significativamente incriminadora e gera encaixe como peças únicas de um quebra-cabeça.

Mas precisaríamos verificar se além disso Textor aponta o dedo para desvios de conduta de indivíduos de forma precisa, afirmando quais pessoas concretas cometeram as fraudes. Assim, é necessário que o Ministério Público exerça seu papel investigativo, requisitando quebra do sigilo bancário dos jogadores suspeitos de cometer os ilícitos.

Certamente, se as informações bancárias revelarem quantias indevidas creditadas em contas de jogadores suspeitos em épocas coincidentes às anômalas apostas, que não decorram nem de seus contratos com o clube nem de quaisquer fontes lícitas justificáveis, estaremos diante do tríptico evidenciador da fraude.

Laudo da inteligência artificial evidenciando um número excessivo de lances anormais, relatório demonstrando apostas especialmente atípicas relacionadas aos lances anormais e informações bancárias comprovando movimentações financeiras não justificadas, em favor dos suspeitos na época dos lances e das apostas.

A imprensa ficou escandalizada diante dos anúncios de Textor, o qual inclusive já foi suspenso pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), pois é possível estarmos diante daquilo que se convencionou chamar de fishing expedition. Os senadores Jorge Kajuru e Romário precisarão agir com especial prudência na investigação, assim como o próprio Ministério Público.

Prática vedada por nosso ordenamento jurídico, a fishing expedition consiste em empreender investigações especulativas indiscriminadas sem objetivo certo ou declarado, jogando a rede ao mar para verificar se se consegue pescar algum peixe, assumindo-se risco de nada obter. A cautela precisará ser redobrada, portanto, em relação a possível seletividade dos casos apontados por Textor.

Faz-se importante enfatizar esses aspectos inerentes ao São Paulo e Palmeiras porque, dentro da lógica concorrencial dos negócios que norteia o mundo privado, onde transita o empresário Textor, não podemos perder de vista que esses dois clubes eram em 2023 adversários diretos e principais do Botafogo.

Hipotéticos reconhecimentos de manipulações e aplicações de punições, pretendidas pelo Executivo, seriam muito convenientes do ponto de vista estratégico, empresarial e esportivo, e beneficiariam muito o clube de Textor.

Há muitos interesses econômicos em jogo aqui, o que não significa obviamente que Textor esteja mentindo. Vale lembrar, entretanto, que se ele estiver fazendo acusações falsas, será responsabilizado criminalmente por denunciação caluniosa. O conflito de interesses nesse caso é evidente, escandaloso e gritante.

O prêmio em dinheiro que o São Paulo recebeu pela conquista da Copa do Brasil 2023 foi de R$ 88,7 milhões e o do Palmeiras, pelo Brasileirão, foi de R$ 47,5 milhões. Somados, são R$ 136,2 milhões, fora os direitos de arena por transmissões. Que se investigue com a necessária profundidade, isenção e profissionalismo. A luz do Sol é o melhor desinfetante.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO

Opinião por Roberto Livianu

Procurador De Justiça No MPSP, Doutor em Direito Pela USP, Escritor, Professor, Palestrante, É Idealizador e Presidente Do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

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