EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

Opinião | Brasil que temos para hoje

Em relação a diversos temas, imaginava-se que os grupos lulista e bolsonarista tivessem visões de mundo opostas, mas a realidade é outra

Foto do author Roberto Livianu

Em dois meses, as urnas apontarão quem terá o poder nas cidades, de 2025 a 2028, nos planos Executivo e Legislativo, em verdadeira corrida do ouro, turbinada com quase R$ 5 bilhões de fundão eleitoral (o maior do planeta), manejados com transparência zero pelos coronéis que mandam nos partidos políticos.

Nas eleições anteriores, apenas 12% das pessoas escolhidas para chefiar o Poder Executivo dos municípios eram mulheres, apesar de serem mais de 51% da população. Em quase mil Câmaras Municipais mulher nenhuma foi eleita vereadora.

Mesmo assim, após leis aprovadas ao longo dos anos, em respeito às ações afirmativas que encharcam nossa Constituição federal, consolidaram-se espaços de poder para candidaturas de mulheres e negros, para minimizar essas iniquidades, fixando o sistema de Justiça Eleitoral sanções para o caso de violação às regras estabelecidas.

Eis que os congressistas que parafusaram a mesa e colocaram-na de pé acabam de virá-la aprovando a PEC 9 num deplorável acordo, em que lulistas e bolsonaristas se uniram, em dois turnos na Câmara, anistiando os partidos que violaram as regras do jogo, assim como outras relacionadas ao dever de prestar contas.

Ou seja, viraram a mesa que eles mesmos montaram, solapando de forma contundente direitos civis e segurança jurídica na quarta anistia do gênero, que pode ter perdoado R$ 23 bilhões em dívidas.

A ideia é repudiada de forma uníssona pelo povo, pelas organizações da sociedade civil organizada, pelo mundo acadêmico, pela imprensa, pelas instituições. É profundamente abjeta e não se nota uma voz sequer se levantando em seu favor.

Mesmo assim, a Câmara dos Deputados, em total e absoluto desrespeito em relação à vontade da sociedade que ela representa, em ato de verdadeiro abuso parlamentar, afrontando inclusive a Constituição que protege as ações afirmativas, aprovou esse verdadeiro acinte à moralidade administrativa. Espera-se sinceramente que isso seja democraticamente revertido no Senado.

Além disso, mesmo diante do repúdio de diversos países e até da ONU à falta de transparência nas eleições venezuelanas, em que as atas eleitorais foram sonegadas e houve prisões ilegais de oposicionistas e ativistas observadores do processo democrático, nosso presidente da República e o partido governista referendam esse processo eleitoral notoriamente maculado sob a ótica democrática, o que pode gerar consequências diplomáticas funestas para o Brasil.

Afinal, que democracia temos hoje por aqui? O cientista João Feres Jr., da Uerj, debruçou-se sobre o tema na pesquisa A cara da democracia – e alguns resultados mostram nossos inquietantes contrastes.

No Estado de São Paulo, por exemplo, aprovou-se lei autorizando a militarização de escolas públicas, o que, segundo o Ministério Público, fere a Constituição, tendo sido ajuizada fundamentada e substanciosa ação civil pública nesse sentido.

Apesar de afrontosa à legislação em vigor, até porque a matéria é da competência federal, 83% dos eleitores de Jair Bolsonaro defendem a ideia, e, mesmo no campo lulista, 61% dos eleitores de Lula da Silva também a apoiam.

No mesmo campo, quando se perguntou a respeito do Projeto de Lei n.º 1.904, que punia gestantes que interrompessem a gravidez após a 22.ª semana com penas superiores às de seus estupradores, 20% dos eleitores lulistas concordaram e, da mesma forma, 36% dos bolsonaristas.

E mesmo dez anos após os avanços notórios das cotas raciais, ainda 35% dos eleitores lulistas e 52% dos bolsonaristas são contra, apesar das reiteradas referências às ações afirmativas na Constituição, conforme acima mencionado.

Esses números nos mostram que a sociedade brasileira tem uma compreensão peculiar da vida. Em relação a diversos temas, imaginava-se que os grupos lulista e bolsonarista tivessem visões de mundo totalmente opostas, mas a realidade é outra.

Observe-se: 55% dos bolsonaristas estão de acordo com a aplicação da pena de morte, assim como 42% dos lulistas. Esse dado é bastante significativo, já que na perspectiva da proteção integral aos direitos humanos ela é vedada de forma absoluta pela Carta Maior, mas isso pouco importa no juízo de valor dos entrevistados, não parecendo representar barreira para o sim.

Chama a atenção também que em outra recente pesquisa, promovida pelo Instituto Não Aceito Corrupção em parceria com a Ágora Pesquisa, visando a analisar condutas corruptas e medir seus graus de aceitação, observou-se o repúdio especial à “rachadinha”, contratação de funcionários fantasmas e compra de votos.

Mas, no polo oposto, aceitam-se as violações éticas de corromper um policial para não ser multado e de oferecer alimentos gratuitamente a policiais em uma padaria em troca de receber alguma proteção gratuita. Ou seja, é menos ruim e mais aceitável aquilo que se restringe ao campo da violação ética.

Além da perda total das estribeiras democráticas, é gente demais aceitando a naturalização da vingança social, que pode significar o esgarçamento avançado e a quase ruptura do nosso tecido social e até do pacto republicano.

Temos muitas pessoas acometidas de insensibilidade, não dando valor ao princípio da igualdade, pilar elementar existencial dos povos. Gente demais perdendo as referências mais elementares de humanismo. E quase ninguém querendo saber de integridade. Onde vamos parar?

*

PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’

Opinião por Roberto Livianu

Procurador De Justiça No MPSP, Doutor em Direito Pela USP, Escritor, Professor, Palestrante, É Idealizador e Presidente Do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.