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Economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, consultor econômico e de ensino superior, Roberto Macedo escreve na primeira e na terceira quinta-feira do mês na seção Espaço Aberto

Opinião|O professor Delfim Netto e seu legado acadêmico

Esse legado foi além dos cargos e publicações que teve ao longo da carreira na FEA-USP, pois aprimorou gerações de economistas e fortaleceu instituições

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Por Roberto Macedo e Carlos Antonio Rocca

O falecimento do professor Delfim, como o chamávamos na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), da qual fomos professores, foi objeto de muitas manifestações na mídia, sobretudo sobre a carreira política que o levou a vários cargos públicos e ao assessoramento de políticos. Aqui vamos focar no seu legado acadêmico, que merece destaque muito positivo.

Esse legado foi além dos cargos e publicações que teve ao longo da carreira na FEA-USP, pois aprimorou gerações de economistas e fortaleceu instituições que seguiram suas diretrizes e permanecerão para sempre atuantes no meio acadêmico, com destaque para o Departamento de Economia da mesma faculdade em suas atividades de docência e pesquisa.

Para começar vale lembrar que a FEA-USP foi criada por professores que vieram de faculdades de diferentes áreas, como Direito, Filosofia, Engenharia e História. Com isso o ensino de sua grade curricular, ainda que esses professores tentassem, não permitia uma formação de economistas em sintonia com o que no exterior guiava os cursos de Economia mais inovadores e reconhecidos.

Delfim foi o primeiro economista formado pela FEA-USP que se tornou um de seus professores catedráticos, como na época eram conceituados os docentes de maior status. Mas ele foi muito além do ensino como então usualmente praticado. Buscou lá fora o que mais de moderno havia no ensino de economia e o difundiu.

Além do ensino em si, o professor Delfim ensinava também a pensar, mostrando o caminho, desafiando a inteligência de seus alunos e outros interlocutores. Embora qualquer um pudesse discordar de suas posições, e vários o faziam, cremos que todos concordavam ser quase impossível ler um artigo ou ouvir uma manifestação do professor Delfim sem que isso não estimulasse sua inteligência, aguçasse sua curiosidade e melhorasse sua forma de pensar sobre o assunto, mesmo que sua conclusão fosse dissonante.

E tudo envolvia muito trabalho. O segundo autor deste artigo lembra que uma pós-graduação informal foi liderada por Delfim, com dois anos de seminários diários. A cada um dos participantes era atribuída a tarefa de estudar e expor ao debate os melhores livros da época, abrangendo, entre outros tópicos, matemática para economistas, macro e microeconomia, econometria, desenvolvimento econômico e mais de cem artigos dos mais relevantes da bibliografia internacional.

Depois de deixar o governo, Delfim voltou à FEA e bem ao seu estilo organizou uma série de seminários, inicialmente sobre “O Brasil no Século 21: Desafios do Futuro” e depois sobre o “Estado da Arte em Economia”, abrangendo assuntos técnicos como econometria e macroeconomia, e também temas como o pensamento marxista e a questão da concorrência nos mercados, entre outros. Uma característica marcante desses seminários era a participação de acadêmicos da FEA e de outras faculdades, enriquecendo o debate com diferentes escolas de pensamento econômico.

Poucos mergulharam com tanta profundidade e disposição no conhecimento e compreensão dos modelos econômicos e dos métodos econométricos, destacando sempre a preocupação metodológica fundamental de que hipóteses e modelos teóricos devem ser sistematicamente submetidos ao teste da realidade. Hipóteses e modelos não rejeitados servem para nos ajudar a entendê-la até que eventualmente sejam substituídos por modelos ainda melhores.

No artigo intitulado O mercado e a urna, o professor Delfim desenvolveu uma argumentação que traduz uma interpretação sugerida pela História e que nos obriga a pensar: “A combinação do processo democrático-político (a ‘urna’) com o processo capitalista (o ‘mercado’) cria um mecanismo adaptativo capaz de administrar e compatibilizar as contradições entre a relativa igualdade, a liberdade individual e a eficiência produtiva. (...) É essa combinação que permite a exploração dos caminhos disponíveis e a acumulação de um aprendizado para resolver os problemas da sociedade. E isso lhe dá as condições de sobrevivência: vai se compondo uma sociedade onde se acomodam, pragmaticamente, aqueles três valores não inteiramente compatíveis”.

Mesmo trabalhando diuturnamente, o professor Delfim dizia que nunca trabalhou. Não, não se trata de uma percepção leviana de alguém incomodado pelo seu sucesso. É uma confissão dele mesmo, em entrevista ao projeto da História Oral do Departamento de Contabilidade da FEA. Depois de registrar que antes de se formar em Economia ele já havia se graduado como contador, disse: “O que posso afirmar é que não se escolhe a profissão, ela é que te escolhe. E quando se tem sorte de ela te escolher direito, você nunca trabalha, você vive. É isso! Honestamente, eu nunca trabalhei, só vivi! A profissão me deu alegria, satisfação”.

Como ele deu a todos que receberam seus ensinamentos.

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ECONOMISTAS PELA USP, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR POR HARVARD; E DOUTOR PELA USP, EX-SECRETÁRIO DA FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Opinião por Roberto Macedo

Economista (UFMG, USP e Harvard), é consultor econômico e de ensino superior

Carlos Antonio Rocca

Economista e doutor pela USP, foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo

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