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O jornalista Rolf Kuntz escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Na Argentina, certa, mesmo, só a dureza do ajuste; leia análise

Extinção de regras para reduzir a zero o déficit fiscal impõe custos maiores aos cidadãos mais vulneráveis, como os assalariados e grande parte dos trabalhadores por conta própria

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Atualização:

Só há uma certeza, por enquanto, em relação ao grande ajuste prometido por Javier Milei, novo presidente da Argentina, para conter uma inflação próxima de 200% ao ano: a primeira fase vai ser dolorosa para a maior parte das famílias. Fora do governo, dificilmente alguém pode dizer como será a fase seguinte, porque nenhum plano com etapas e metas parciais foi apresentado.

Com dois pacotes lançados em duas semanas, o presidente se empenhou, até agora, em desmontar os gastos do governo central, em promover uma ampla limpeza orçamentária e, principalmente, em reduzir severamente a presença do poder público nos negócios. O ultraliberalismo impõe sua marca aos primeiros atos do novo governo. Falta saber quanto dessa marca permanecerá, depois do primeiro esforço para reduzir a zero o déficit fiscal.

Nem tudo é novo, na política iniciada por Milei. O choque inflacionário inicial, promovido com a desvalorização do câmbio, assemelha-se à disparada de preços na fase preparatória do Plano Real, quando se usou como padrão a Unidade Real de Valor (URV). Passado esse choque terapêutico, houve condições para o início de um ajuste efetivo, por meio da disciplina fiscal e monetária, e para a implantação da moeda até hoje usada no Brasil. Na Argentina, onde o dólar é usado, normalmente, como referência de valor, o câmbio foi usado no lance inicial do ajuste.

Manifestantes protestaram contra as medidas anunciadas pelo governo Milei na Argentina.  Foto: Luis Robayo / AFP

O amplo movimento inicial de liberalização pode ser muito duro para as indústrias, mesmo para aquelas competitivas, e muito penoso para os trabalhadores. Os aluguéis foram liberados, bens de consumo poderão encarecer, subsídios de transporte e energia serão eliminados, demissões poderão ocorrer e há o risco de redução de salários. Todas essas mudanças foram facilitadas por decisões de Milei.

A ampla extinção de regras impõe custos maiores aos cidadãos mais vulneráveis, como os assalariados e grande parte dos trabalhadores por conta própria. A prometida “modernização do regime laboral para facilitar o processo de criação de emprego efetivo” parece indicar uma ampla desregulamentação do mercado de trabalho.

Um dos poucos sinais de preocupação com os indefesos foi a manutenção de políticas como a de Asignación Universal por Hijo, um sistema de assistência familiar variável segundo o número de filhos menores ou incapazes. Com o empobrecimento ocorrido nos últimos anos, o número de famílias qualificadas para receber ajuda certamente aumentou. O anúncio inclui também a manutenção do programa Potenciar Trabajo, um sistema de promoção de criação de oportunidades para pessoas subocupadas.

Não se mencionam, nos pacotes divulgados pelo novo presidente, políticas voltadas para o desenvolvimento industrial, a modernização produtiva e o aumento de competitividade. Se as mudanças prometidas favorecerão o crescimento e a renovação da indústria argentina é algo para ser verificado a partir do próximo ano. Com qualquer resultado, positivo ou negativo, essa experiência poderá ser muito instrutiva para o Brasil e para outros emergentes.

Opinião por Rolf Kuntz

Jornalista

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