Promessas de reconstrução, comida, emprego, saúde, educação e previsibilidade econômica marcaram o discurso de posse, prenunciando um governo voltado, de novo, para objetivos nacionais. Para entregar o prometido, no entanto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá de vencer um obstáculo maior que a oposição bolsonarista e golpista. Esse obstáculo é o petismo, com suas névoas ideológicas, sua quase religiosidade e suas dificuldades para dialogar com outras ideias e processar os dados da experiência. Na primeira semana de governo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, falou de uma taxa de juros “fora de propósito”, incompatível com a inflação atual e com a atividade econômica já desacelerada. Teria sido mais cuidadoso, talvez, se houvesse levado em conta as projeções de inflação e das contas fiscais publicadas no boletim Focus, na segunda-feira, um dia antes de sua fala. Tendo passado por um curso de Economia, ele deve conhecer a relação entre expectativas fiscais, projeções de variação dos preços e formação de juros no mercado.
Mas o petismo do ministro da Fazenda parece sobrepor-se, com alguma frequência, à sua formação acadêmica e à percepção dos fatos. A mesma disfunção tem sido observada em outros companheiros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se o presidente se descuidar, o governo Lula 3 poderá converter-se em Dilma 3, sufocando de inveja o grande responsável pelo desgoverno brasileiro nos últimos quatro anos.
A agressão aos fatos foi bem além da fala do ministro da Fazenda. Seu colega da Previdência, Carlos Lupi (PDT), bem afinado com o petismo, negou a existência de um déficit financeiro no sistema previdenciário, alegando a obrigação do Estado de prover aposentadoria e pensão aos trabalhadores. Sim, o Tesouro pode cobrir o buraco da Previdência, mas o buraco é um dado contábil e o dinheiro sai de alguma outra fonte.
Além de negar um fato bem conhecido e registrado, mensalmente, nas contas fiscais consolidadas, o ministro ainda propôs uma revisão da recente mudança por ele qualificada como “antirreforma”. Se esse tipo de opinião for consagrado na administração pública, talvez os cursos de Contabilidade tenham de rever seus currículos. Além disso, as professoras da escola básica talvez devam ser treinadas para um novo ensino das quatro operações e das noções elementares de aritmética.
A fala de Lupi a respeito da Previdência foi desautorizada pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, uma espécie de gerente do Executivo federal. Além disso, o presidente da República interveio para conter o falatório, limitar polêmicas e vincular propostas e decisões na chefia de governo. Não basta, no entanto, proclamar essa disciplina quando ele mesmo parece esquecer as condições de sucesso de seu primeiro mandato e as lições de alguns companheiros daquele período.
O governo Lula 1 foi beneficiado, em primeiro lugar, pela enorme reconstrução fiscal, monetária e administrativa realizada nos anos 1990. Seu ministro da Fazenda, Antonio Palocci, mostrou competência e prudência. A equipe da Fazenda incluía, entre outros profissionais de respeito, o economista Marcos Lisboa. O Banco Central (BC), chefiado por Henrique Meirelles, foi essencial para o controle da inflação, mantida em níveis muito moderados. Quase todas as condições são hoje diferentes, incluído o aparente despreparo do governo petista para consertar as contas públicas. O novo ministro da Fazenda promete para este semestre um plano de ordenação fiscal, confirmando, portanto, a pouca atenção dada ao assunto antes da vitória na eleição de outubro.
O despreparo para analisar e redesenhar as finanças públicas foi evidenciado também pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no discurso de posse, no Congresso Nacional. Segundo ele, o Serviço Único de Saúde (SUS) foi a instituição mais perseguida nos últimos quatro anos e “a mais prejudicada por uma estupidez chamada teto de gastos”.
Que a política de saúde tenha sido devastada pelo presidente Jair Bolsonaro é indiscutível. Igualmente depredadas foram a educação, a ciência e a tecnologia. Mas atribuir a devastação do SUS ao teto de gastos é uma enorme bobagem. O teto nunca foi respeitado quando se tratou de preservar despesas de interesse do presidente Bolsonaro.
Além disso, a criação desse instrumento de controle foi importante para a reparação dos danos causados na última gestão petista. O conserto foi interrompido e em parte revertido no desastroso mandato recém-terminado.
Violado muitas vezes, o teto de gastos pelo menos impôs algumas pressões ao poder federal e serviu como sinalizador político. Pode-se pensar em outras âncoras fiscais, talvez melhores, mas o presidente e sua equipe deveriam evitar qualquer indício de relaxamento financeiro. Recursos são limitados e um bom governo depende de boas escolhas, de uma firme definição de prioridades e de ação competente e sem desperdício. Nenhuma fantasia petista eliminará esses dados. O presidente Lula já mostrou saber disso. Se esqueceu, é hora de se lembrar.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.