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Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Pé de Meia

No ensino médio, não é o mercado que atrai os jovens; são a má qualidade e a inadequação dos cursos que os expelem

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Com a reforma do ensino médio estancada, o governo resolveu instituir o programa Pé de Meia, pelo qual estudantes de baixa renda do ensino médio que frequentem as aulas receberão R$ 200 por mês e mais R$ 1 mil por ano completado, a serem recebidos ao fim do curso. Pelo anúncio, o custo seria de R$ 7,1 bilhões ao ano, atendendo a 2,5 milhões de estudantes. Pelos dados da pesquisa do IBGE que consultei para este artigo (Pnad Contínua 2021), existiriam cerca de 5,7 milhões de jovens entre 15 e 24 anos com renda familiar per capita de até ¼ de salário mínimo, dos quais 2,8 milhões no ensino médio, número próximo ao divulgado pelo governo.

Os objetivos da lei são genéricos – democratizar o acesso, mitigar a desigualdade, estimular a mobilidade social, promover o desenvolvimento humano – e em nenhum lugar se indica como o incentivo contribuirá para esses fins. O que está detrás, aparentemente, é a ideia de que existe muita evasão escolar no ensino médio, que ela afeta sobretudo jovens de baixa renda e que isso pode ser corrigido com um estímulo financeiro.

É uma ideia antiga, vinda do Bolsa Escola, que deu origem ao Bolsa Família. O que se viu, no entanto, foi que as chamadas “condicionalidades” praticamente não funcionavam. Com bolsa ou sem bolsa, havendo escolas, as famílias mandavam os filhos, da mesma maneira que buscavam atendimento de saúde se havia serviços disponíveis. Com suas limitações, o Bolsa Família é importante como política de renda, mas não tem como solucionar problemas não resolvidos das áreas de educação e saúde.

A outra coisa que sabemos é que o problema da deserção escolar é muito menor do que se pensa. Os trabalhos de Philip Fletcher, Sérgio Costa Ribeiro e Ruben Klein mostraram, na década de 80, que o problema não estava no abandono, e sim na repetência. As crianças permaneciam na escola, mas aprendiam pouco e iam ficando para trás. Depois, pensou-se que o abandono ocorria principalmente a partir do ensino fundamental 2, aos 11 anos de idade, e se acentuava no ensino médio. Mas os dados atuais mostram que praticamente não existe abandono até os 15 anos e que ele não é maior entre os mais pobres. Para estes, aos 14 anos, a porcentagem que não estuda é de 0,6%. Há um pequeno aumento aos 15 anos, para 2,6%, e só a partir daí cresce: 4,8%, 14,2% e 49,3% para 16, 17 e 18 anos de idade. Dos 19 anos em diante, mais da metade dos jovens está fora da escola. Aos 19 anos, 27% só estudam, 12% estudam e trabalham, 27% só trabalham e 33% engrossam o exército dos nem-nem.

Existe claramente um efeito de idade. Ao se aproximar da maioridade, os jovens precisam decidir o que fazer da vida, e a opção para a maioria é deixar de estudar. Há os que deixam a escola para trabalhar, mas poucos conseguem de fato uma ocupação. A maioria abandona simplesmente porque ficou para trás, não entende nem se motiva pelo que é ensinado e não vê perspectiva na corrida de obstáculos que é concluir o ensino médio, fazer o Enem e tentar uma faculdade. É improvável que uma pequena bolsa de permanência tenha mais do que um efeito marginal, já que ela é desnecessária para os que continuam matriculados e incapaz de fazer com que os que já desistiram voltem à escola.

A reforma do ensino médio de 2019, agora condenada pelo MEC, tentou lidar com parte deste problema ao abrir caminho para um ensino médio com conteúdos modernos, mais possibilidades de escolha e o fortalecimento de um ensino técnico mais prático e apropriado para os milhões que não querem ou não conseguem seguir os cursos tradicionais. Passar de um modelo único, que deixa milhões pelo caminho e se baseia num currículo elitista moldado pelo Enem, para um outro com a complexidade requerida por uma educação de massas, com profundas desigualdades e em meio a uma revolução tecnológica, não seria fácil.

Teorias pedagógicas à parte, tenho para mim que a principal razão da resistência que a reforma encontra foi que ela mexe com as rotinas de trabalho do ministério, das secretarias de educação e dos professores das redes públicas. Apesar disso, várias tentativas foram feitas de experimentar com currículos inovadores, pluralidade de trajetórias e cursos técnicos, que precisam ser valorizadas e avaliadas.

Uma alternativa que tem sido apresentada é a escola média de tempo integral. Hoje, nas redes estaduais, somente 20% dos alunos estão nestes cursos, enquanto um número muito maior (que não aparece mais nas estatísticas do Inep) estuda em cursos noturnos em condições precárias. Quando escolas de tempo integral são bem geridas e o currículo é inovador, o resultado pode ser interessante, mas isso pode ser também feito, a menor custo, com escolas diurnas regulares. Um bom uso do dinheiro do Pé de Meia, aliás, seria destiná-lo a reduzir o ensino noturno.

Duas frases simples resumem a moral desta história. No ensino médio, não é o mercado que atrai os jovens; são a má qualidade e a inadequação dos cursos que os expelem. E não há como melhorar o que está ruim colocando dinheiro para ter mais do mesmo.

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SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Opinião por Simon Schwartzman

Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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