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Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Recordistas mundiais

Cada vez há mais pessoas querendo estudar, cada vez mais os governos buscam subsidiar os estudos. O sistema incha, mas fica do mesmo tamanho

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O Censo da Educação Superior publicado recentemente confirma que somos recordistas mundiais em pelo menos duas coisas, a proporção de estudantes em instituições privadas, 80%, e em cursos a distância, metade. No setor público, somente 10% dos alunos estão em cursos a distância; no setor privado, 60%. São ao todo cerca de 10 milhões de estudantes: 27% em cursos de negócios, administração e Direito; 22% na área de saúde e bem-estar; e 17% na área de educação. Nas engenharias são 9%, na computação, 7%, e, nas ciências naturais, 1,3%.

O Brasil não difere muito da maioria dos países, mas exagera. Em quase todo o mundo, também são três as áreas com mais estudantes: administração (incluído economia, negócios e Direito) saúde (incluindo medicina) e educação. A principal diferença do Brasil é o tamanho diminuto das áreas de ciências naturais e engenharias. Nos últimos anos, em quase toda parte, a educação superior privada cresceu, assim como a educação a distância. O setor privado cresceu porque o setor público não dá conta de atender a toda a demanda, e a venda de serviços de ensino se transformou em um bom negócio. Além disso, o setor privado conta geralmente com mais autonomia e capacidade empresarial para ir atrás de sua clientela. O alunos das instituições públicas são em geral jovens de origem social média ou alta que completam o ensino médio de qualidade e conseguem passar com boas notas nos processos seletivos. Para os mais velhos, geralmente mais pobres, que terminam o ensino médio com dificuldade e precisam trabalhar, a alternativa eram os cursos noturnos em instituições privadas. A pandemia mostrou que era possível dar esses mesmos conteúdos a distância a um menor custo, e isso se tornou irreversível.

A principal explicação para nossos extremos é o elitismo do modelo adotado na reforma universitária de 1968, que perdura em suas linhas gerais. A reforma procurou trazer para o Brasil um modelo único de universidade de pesquisa vagamente inspirado na universidade alemã do início do século 19 e adotado por algumas universidades americanas, com professores doutores trabalhando em tempo integral, envolvidos em atividades de ensino e pesquisa e alunos bem qualificados e estudando também em tempo integral. É um modelo que custa caro e não tem como dar conta da crescente demanda por educação superior que só começaria no Brasil a partir da década 1970, vinda de estudantes que chegam do ensino médio com formação menos rigorosa e precisando trabalhar. Os países que conseguiram lidar com essa transição foram o que os que mantiveram e até ampliaram a presença de suas instituições de elite, mas também investiram em outras modalidades de ensino profissional e técnico, já a partir do ensino médio. O Brasil insistiu em um modelo público único que se manteve imutável na forma, mas, ao se ampliar de maneira forçada, acabou se deteriorando em parte, criando grande desigualdade em seu interior e abrindo espaço para que o setor privado expandisse.

Por muitos anos, o governo federal tratou o setor privado como um problema, e não como parte da solução para sua incapacidade de ampliar e diversificar a oferta de educação. O sistema de avaliação criado em 2004 tinha como principal objetivo controlar o setor privado, o que nunca conseguiu. E os governos do PT, supostamente contrários ao setor privado, ao se darem conta de que só ele seria capaz de ampliar o acesso, passaram a subsidiá-lo através de dois mecanismos, as isenções fiscais do Prouni e o crédito estudantil garantido do Fies, fazendo com que ele se transformasse em um negócio cada vez mais vantajoso.

Os governos também fizeram um esforço de ampliar o setor público, através dos financiamentos do programa Reuni, e de democratizar o acesso através da política de cotas. Com a crise financeira a partir de 2015 e a rigidez burocrática e administrativa, o setor público só conseguiu passar de 1,6 milhões para 1,9 milhões de matrículas entre 2010 e 2020, enquanto o setor privado passava de 4,7 milhões a 6,7 milhões. Com a política de cotas, a composição social do alunos no setor púbico se tornou mais equitativa, mas foi o setor privado que abriu mais oportunidades de estudo para pessoas vindas de condição social mais desfavorável.

E tem a questão, nunca enfrentada, da má qualidade e das altas taxas abandono. Entre todos que entraram no ensino superior em 2019, as taxas de desistência, em 2023, eram de 64% no ensino privado a distância, em um extremo, e 42% no presencial público, no outro. Dos que se formam, metade não consegue trabalhar em atividades de nível superior. Cada vez há mais pessoas querendo estudar, cada vez mais os governos buscam subsidiar os estudos, mas não existe nenhum sistema que informe aos estudantes, aos futuros empregadores e aos próprios governos em que instituições e áreas as pessoas têm mais chances de se qualificar a partir das condições que trazem e fazer uso de seus conhecimentos. O sistema incha, mas fica do mesmo tamanho.

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SOCIÓLOGO, É AUTOR DE FALSO MINEIRO: MEMÓRIAS DA POLÍTICA, CIÊNCIA, EDUCAÇÃO E SOCIEDADE (INTRÍNSECA/SELO REAL, 2021)

Opinião por Simon Schwartzman

Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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