Na semana passada, enquanto o mundo celebrava a trégua entre Israel e o Hezbollah, o Oriente Médio comprovou mais uma vez sua capacidade de surpreender. Em questão de dias, forças rebeldes na Síria capturaram mais de 80 cidades, incluindo Aleppo, a segunda maior cidade síria. A reviravolta, que tem relação direta com os desdobramentos em Gaza e no Líbano, reaqueceu a guerra civil iniciada em 2011, dissolvendo linhas congeladas desde 2020. A Síria está de novo à beira de mergulhar no caos, ou melhor, de mergulhar mais fundo no caos, que pode tragar o Levante.
Em 13 anos, 600 mil sírios foram mortos, 13 milhões foram deslocados e 6,8 milhões fugiram do país. Dos 15 milhões remanescentes, 90% vivem na miséria.
A composição que vigorava desde 2020 resultava do equilíbrio entre três forças: o regime de Bashar al-Assad, apoiado por Rússia e Irã; as Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês), apoiadas pelos EUA no nordeste; e milícias apoiadas pela Turquia no noroeste.
Após o início da guerra, Al-Assad e seus aliados levaram quatro anos para reconquistar Aleppo. Que tenha sido perdida em quatro dias dá a medida da vulnerabilidade do regime. Com a Rússia concentrada na Ucrânia e Irã e Hezbollah debilitados pelos golpes de Israel, os rebeldes farejaram sangue nas águas e atacaram.
Seria tentador celebrar a humilhação de Al-Assad, um ditador corrupto que promoveu massacres hediondos contra seu povo. Mas no Oriente Médio o inimigo de seu inimigo nem sempre é seu amigo, e as forças que capturaram Aleppo não são amigas da democracia.
A ofensiva foi liderada pelos jihadistas do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), outrora afiliados a Al-Qaeda, em uma coalizão com o Exército Nacional Sírio (SNA) apoiado pela Turquia, que até então, após um acordo com a Rússia, vinha moderando sua agressividade. As SDF também tentam expandir territórios em Aleppo.
Essas forças comungam do ódio a Al-Assad, mas têm conflitos entre si. O maior interesse da Turquia é reprimir forças curdas, como as das SDF, que pleiteiam um Estado nacional, o Curdistão, envolvendo territórios da Turquia, Irã, Iraque e Síria. As relações entre o SNA e o HTS são marcadas por disputas ideológicas e territoriais. Por ora, todos puseram suas diferenças de lado, mas Deus sabe como as dirimirão quando a poeira baixar. Se baixar, já que os aliados de Al-Assad, mesmo distraídos, não o abandonarão.
Em seu primeiro mandato como presidente dos EUA, Donald Trump retirou tropas do norte da Síria, favorecendo posições russas e viabilizando ofensivas turcas contra os curdos. Cerca de 900 soldados foram mantidos para auxiliar os curdos a defender zonas petrolíferas contra o Estado Islâmico e o governo. A possibilidade de que Trump retire esses soldados em seu novo mandato, abrindo um vácuo de poder, é parte da explicação para as ofensivas. A Turquia busca alavancagem para impor termos a Al-Assad.
Os desdobramentos dessas manobras são imprevisíveis. Elas comprovam uma coisa certa sobre o Oriente Médio – a sua capacidade de surpreender – e a única coisa certa sobre a guerra civil na Síria: que ela está muito longe de acabar.