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Só discurso não basta

Tarcísio dá raro exemplo de humildade ao admitir que, ao valorizar o confronto, pode ter ajudado a agravar a violência policial em SP. Mas não é suficiente: ele precisa demitir Derrite

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Por Notas & Informações
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O governador Tarcísio de Freitas deu um notável exemplo de humildade e espírito público ao admitir que seu discurso de valorização do confronto na área de segurança pública pode ter sido decisivo para o aumento dos casos de violência policial em São Paulo. “Às vezes, cometemos erros. Nosso discurso tem peso e, se erramos a mão no discurso, isso tem peso. Hoje, é fácil reconhecer isso”, disse o governador paulista na sexta-feira passada, durante um simpósio promovido pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Há poucos dias, Tarcísio já havia reconhecido que errou ao não valorizar as evidências positivas do uso das câmeras corporais no fardamento da Polícia Militar (PM) para a segurança da sociedade e dos próprios policiais. No evento do IDP, contudo, ele foi além, extrapolando a dimensão eminentemente técnica que envolve o debate sobre o uso das bodycams para reconhecer sua responsabilidade pessoal pelo problema na condição de maior autoridade do Poder Executivo de São Paulo. E o fez diante da imprensa, de ministros do Supremo Tribunal Federal, do ministro da Justiça e de especialistas em políticas de segurança pública.

De fato, como se constata pelos dados do Sistema Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, o índice de letalidade policial por 100 mil habitantes em São Paulo dobrou desde quando Tarcísio assumiu o governo estadual, saltando de 0,9 para 1,8 entre o início de 2022 e outubro de 2024. Ou seja, há um liame inequívoco entre a política de segurança pública da atual gestão e o aumento de mortes provocadas por intervenção policial no Estado.

Na história recente, não se tem notícia de um mandatário que tenha se prestado a um mea culpa nesse nível como Tarcísio. O que tem prevalecido na política moderna, ao contrário, é a postura arrogante de líderes que se arvoram em senhores da verdade e julgam ser os únicos intérpretes legítimos dos desejos do “povo”. Caminhando na direção diametralmente oposta, o governador paulista, a um só tempo, indicou que não está disposto a brigar com os fatos e, ademais, pretende corrigir os rumos de sua política de segurança pública, que ele mesmo classificou como uma “ferida aberta”.

Esse reposicionamento, ainda segundo Tarcísio, significa “modular o discurso para garantir, de fato, segurança jurídica (à atividade policial), mas também o atendimento às normas e aos procedimentos operacionais, como não permitir o descontrole, como deixar claro que não existe salvo-conduto”. E aqui reside o problema. Aprumar o discurso, não há dúvida, é fundamental. Afinal, como o próprio governador reconheceu, as palavras da autoridade têm peso. Mas só discurso não basta. A disposição de Tarcísio de reavaliar sua gestão da segurança pública tem de se materializar em ações para que disso advenham os resultados benfazejos aos quais ele parece almejar. Na prática, isso significa, em primeiro lugar, demitir imediatamente o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.

A natureza de Derrite, egresso da banda da PM que se orgulha da truculência, é obstáculo intransponível para fazer com que a polícia seja orientada pelo respeito às leis e aos direitos humanos – eixos fundamentais de uma política de segurança pública no Estado Democrático de Direito. Se Tarcísio fez a opção pela civilização ante a barbárie, como as suas virtuosas palavras indicam, ele precisa, necessariamente, de outro secretário de Segurança Pública para auxiliá-lo na missão de recolocar a PM de São Paulo no patamar de uma das mais eficientes e menos letais forças policiais do País. Era assim até pouco tempo atrás – e pode voltar a ser a depender da disposição do governador de traduzir seu discurso em ação.

O histórico de Derrite como mau policial militar, seu desempenho como deputado membro da “bancada da bala” e suas ações e palavras como secretário estadual de Segurança Pública evidenciam que não é ele a pessoa que vai ajudar Tarcísio a substituir por confiança o medo que muitos paulistas passaram a sentir da PM. Ao contrário, a permanência de Derrite no cargo decerto será vista como uma traição inequívoca às suas supostas boas intenções.