A reação da sociedade civil foi determinante para enfraquecer o movimento pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo com o objetivo de, supostamente, investigar algumas ONGs que atuam na Cracolândia. Ao que tudo indica, essa CPI, caso seja instalada pela Mesa Diretora na volta do recesso parlamentar, não se prestará a investigar coisa alguma, e sim a intoxicar o debate público em pleno ano eleitoral.
Que fique claro: o uso dos recursos públicos repassados a essas ONGs não só pode, como deve passar por escrutínio público, inclusive por meio de uma CPI, instrumento legítimo à disposição do Poder Legislativo. O problema é que o pedido de abertura da tal “CPI das ONGs”, feito pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), a rigor, não traz um fato determinado a ser investigado – o parlamentar fala apenas na existência de uma “máfia da miséria” que viveria de “explorar” a miséria física e psíquica dos dependentes químicos –, o que dá azo à inferência de que o propósito constitucional da CPI seria sobrepujado pelos interesses eleitoreiros dos que a apoiam.
Isso ficou claro há poucos dias, quando o autor do pedido de CPI, por meio de suas redes sociais, alçou o padre Júlio Lancellotti, conhecido por seu trabalho em defesa da população de rua, à condição de “alvo” principal das investigações, para perplexidade da Arquidiocese de São Paulo e surpresa de um grupo de vereadores que haviam assinado o requerimento, mas não sabiam que era o pároco o foco do vereador Rubinho Nunes. Dos 22 signatários do pedido de CPI, 8 já retiraram suas assinaturas – Sidney Cruz (Solidariedade), Thammy Miranda (PL), Sandra Tadeu (União Brasil), Milton Ferreira (Podemos), Dr. Nunes Peixeiro (MDB), Xexéu Tripoli, João Jorge e Beto do Social (PSDB).
É óbvio que qualquer CPI tem uma natureza eminentemente política. Entretanto, apenas o fito do embate político não autoriza a abertura de uma comissão de inquérito por uma Casa Legislativa. Para isso há a tribuna; há os partidos políticos; há as redes sociais; entre outros meios para defesa de determinadas agendas programáticas, valores e visões de mundo. A instalação de uma CPI requer a existência de mínima materialidade que justifique a dedicação do tempo dos parlamentares e o dispêndio de recursos dos contribuintes. Não é o caso, ao que parece, da “CPI das ONGs”.
Não há dúvidas de que a tragédia social da Cracolândia, que há mais de três décadas permanece como uma chaga aberta no coração da maior cidade do País, é um tema que deve mobilizar todos os paulistanos. Em ano eleitoral, não seria diferente. Candidatos e eleitores devem se debruçar sobre a questão, entre tantas outras. Mas o debate há de ser qualificado. Mais bem dito: questões vitais para a metrópole, como, além da citada Cracolândia, as relativas à mobilidade, zeladoria, urbanismo, mudanças climáticas e até mesmo segurança pública, têm de ser tratadas com técnica, espírito público e respeito à verdade factual, e não de forma enviesada por diferenças ideológicas.
Os que sofrem com o abandono da cidade de São Paulo não pensam em ideologia quando enfrentam as agruras do transporte público todos os dias; quando tropeçam em ruas esburacadas; quando sentem medo ao transitar por vias mal iluminadas. A precariedade na oferta de alguns serviços públicos, em especial nas áreas de saúde e educação, ou o congestionamento provocado por semáforos que apagam ao contato com as primeiras gotas de chuva não decorrem do viés ideológico do prefeito, seja de que partido político for, mas, em geral, de incompetência administrativa. Isso é que precisa estar em discussão.
Os vereadores, portanto, servirão muito melhor aos munícipes, em especial aos milhares de doentes que padecem dos terríveis males da dependência química, se acaso fizerem um corajoso e sincero autoexame para avaliar onde a Câmara Municipal, no limite de sua responsabilidade, tem falhado ao permitir que São Paulo, malgrado sua pujança política e econômica, esteja nesse estado de degradação – sendo a Cracolândia apenas a evidência mais dolorosa desse misto de abandono com inépcia.