O médico Nelson Teich pediu demissão do cargo de ministro da Saúde menos de um mês depois de assumi-lo, provavelmente em respeito a seu juramento profissional, que diz, entre outras coisas: “A ninguém darei por comprazer nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda”. O mesmo comportamento teve o antecessor de Nelson Teich, o também médico Luiz Henrique Mandetta, ao recusar-se a obedecer às ordens do presidente Jair Bolsonaro que claramente causariam ainda mais danos à saúde da população brasileira, já bastante castigada pela pandemia de covid-19.
Qualquer médico que assuma o Ministério da Saúde e queira permanecer no cargo por mais de 15 dias terá que renunciar a esse juramento. Será, portanto, um mau profissional de saúde, que aceitará reduzir o Ministério da Saúde a mero despachante dos patológicos desejos de Bolsonaro. Pior, será um cúmplice de um empreendimento que, sem exagero, já pode ser chamado de social-darwinista – em que a morte por covid-19 é vista como uma forma de depuração da sociedade, pois só abate aqueles que não têm “histórico de atleta”.
Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta recusaram-se a chancelar a obsessão de Bolsonaro pela cloroquina, remédio cuja eficácia contra o coronavírus está muito longe de ser comprovada e cujos perigosos efeitos colaterais são, ao contrário, bastante conhecidos. Mandetta, quando ainda ministro, chegou a assinar um protocolo que liberava a droga para uso somente em pacientes em estado grave, com indicação médica e com a anuência do paciente. Mas, assim como seu sucessor, não aceitou a imposição de Bolsonaro para ampliar o uso em qualquer estágio da doença.
Pressionado pelo presidente nos últimos dias, Nelson Teich disse que havia ainda muita incerteza sobre a cloroquina e rejeitou a droga como um “divisor de águas” no tratamento da doença. Além de Bolsonaro, os únicos chefes de Estado que defendem a cloroquina como elixir milagroso contra a covid-19 são o norte-americano Donald Trump e o venezuelano Nicolás Maduro, o que dispensa comentários.
Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta também haviam manifestado oposição ao relaxamento das medidas de isolamento social, contrariando o presidente Bolsonaro, que dia e noite exige o fim da quarentena e a “volta ao normal” em todo o País, sob o argumento de que é preciso impedir o colapso da economia. É tal a determinação do presidente de colocar em risco a saúde e a vida de milhões de brasileiros para salvar sua própria pele que ele ameaçou fazer um pronunciamento em rede nacional, hoje, para insistir em seu discurso contrário ao isolamento, afrontando os governadores e prefeitos que, além de terem que lidar com a pandemia, são obrigados a enfrentar a sabotagem do governo federal.
Em menos de um mês, nada menos que três ministros – Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Sérgio Moro – deixaram o governo por se recusarem a cumprir ordens do presidente – não por insubordinação, mas em respeito aos brasileiros e aos princípios republicanos. Para Bolsonaro, quem o contraria está a contrariar o povo, que ele julga encarnar, razão pela qual seu comando deve ser obedecido sem questionamentos, mesmo que viole a Constituição, a ética e a decência.
Assim será com o próximo ministro da Saúde? Em vez de organizar os esforços nacionais do combate à pandemia, que está matando quase mil brasileiros por dia e esgotando o sistema hospitalar do País, o novo titular terá de ser apenas um obsequioso serviçal, pronto a pôr em prática os devaneios de Bolsonaro e a rasgar os manuais da ciência médica, fazendo o que nenhuma autoridade de saúde no mundo civilizado faria neste gravíssimo momento? Ou seja, terá que trabalhar pela sobrevivência política do presidente em detrimento da sobrevivência de milhares de brasileiros?
Como escreveu o médico Antonio Carlos do Nascimento em artigo publicado ontem no Estado, “sem a opção do genocídio, só nos resta o isolamento e a testagem abrangente para limitar o universo de circulação do vírus”. Aparentemente, o presidente Bolsonaro já fez sua mórbida opção.