O presidente Vladimir Putin repousa sobre um trono de chumbo no Kremlin e caminha a passos largos para permanecer dando as ordens na Rússia ao menos até 2036. Na segunda-feira, o Tribunal Constitucional do país ratificou a reforma da Constituição aprovada pela Duma, a câmara baixa do Parlamento, e sancionada pelo presidente no dia 14 passado. A reforma, que para começar a valer deve ser aprovada por uma votação popular prevista para o dia 22 de abril – data em que se celebra o aniversário de Lenin –, abre caminho para a consolidação da autocracia do líder russo. Nomeado primeiro-ministro por Boris Yeltsin em 1999, Vladimir Putin poderá perfazer 37 anos no poder, algo sem precedente na história republicana moderna.
Entre as alterações constitucionais recém-aprovadas está a introdução de um curioso dispositivo de autoria da deputada Valentina Tereshkova que “zera” a contagem dos mandatos exercidos por Putin até agora. Embora a Constituição russa continue autorizando apenas uma reeleição para o mandato presidencial de seis anos, na prática, a medida proposta por Tereshkova beneficia o atual mandatário ao permitir que ele seja novamente candidato nas eleições de 2024 – quando termina seu atual mandato, o quinto – e 2030.
Putin domina a Duma, consegue aprovar o que quiser na Casa Legislativa. Sua proposta de reforma constitucional, apresentada no início deste ano (ver editorial O futuro de Putin, publicado em 20/1/2020), tramitou rapidamente e foi aprovada por 383 votos a zero, com 43 abstenções. Na Rússia, o Poder Legislativo hoje é um mero autorizador dos desígnios autoritários do anacrônico czar do século 21.
Além de permitir as novas candidaturas de Putin, a reforma da Lei Maior concentrou poderes na presidência, antes diluídos em outros órgãos do Poder Executivo. Ou seja, Vladimir Putin não só está autorizado a continuar sendo presidente, como será um presidente ainda mais forte. A reforma também estabelece a “crença em Deus” como um dos valores tradicionais da Rússia e impede o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que já era proibido, mas agora pela força do texto constitucional.
Parlamentares da escassa oposição e críticos do governo condenaram a aprovação da reforma constitucional, classificando-a como uma “manipulação cínica” de Putin sobre os outros Poderes. Manifestações públicas de protesto foram marcadas para os próximos dias, mas não é certo que ocorram em função do isolamento social recomendado para conter a pandemia de covid-19. No entanto, ainda que ocorram, é improvável que esses atos tenham força para frear o ímpeto liberticida de Putin, sobretudo diante da maciça base de apoio ao presidente na Duma.
Quando anunciou a ideia de mudar a Constituição no início do ano, a primeira grande reforma desde o advento da Magna Carta de 1993, Putin deixou claro que já pensava em como continuar ditando o futuro da Rússia após o fim de seu atual mandato. “Só os idiotas acreditaram que Putin deixaria o poder em 2024”, disse à época Alexei Navalny, principal líder da oposição. É possível imaginar que o destino da Rússia possa estar atrelado às vontades de Putin mesmo após 2036, quando ele terá 83 anos. No bojo da reforma constitucional aprovada havia uma medida que fortalecia o Conselho de Estado, órgão que Putin planejava comandar após o final de seu mandato em 2024 para atuar como uma espécie de tutor dos futuros presidentes e premiês. Com a pitoresca solução dada pela deputada Valentina Tereshkova, a ideia foi abandonada. Mas nada impede que a saída, ou qualquer outra, seja inventada no futuro caso Putin sinta que seu domínio esteja ameaçado.
“Gosto do meu trabalho, mas para manter o poder tenho de concordar com algum esquema que seria inaceitável para o país ou então destruí-lo”, disse Putin no final do ano passado, poucos dias antes de apresentar ao Parlamento sua proposta de reforma constitucional que traduz à perfeição o “esquema” que cinicamente ele julgava “inaceitável”. A volatilidade das convicções é um dos traços mais marcantes da personalidade autocrática.