Numa canetada, o presidente dos EUA, Donald Trump, decretou o retorno do mundo ao século 19. Se Mao Tsé-tung condenou à fome quase 45 milhões de chineses com seu Grande Salto para a Frente, o plano de industrialização forçada que arruinou a China entre 1958 e 1962, Trump deu o que se pode chamar de “Grande Salto para Trás”, para forçar a reindustrialização dos EUA à custa da globalização – que durante décadas ajudou a construir a pujança americana.
O “Dia da Libertação” anunciado por Trump elevou as barreiras tarifárias de seu país a um nível acima do verificado na época da Grande Depressão e mesmo no século 19. Segundo Trump, os EUA se “libertaram” neste momento das nações que têm “saqueado, pilhado, estuprado e roubado” os americanos. Nada mais falso.
A integração arquitetada pelos líderes do pós-guerra, com os EUA à frente, foi justamente uma reação à fragmentação da primeira metade do século 20 que contribuiu para a Depressão e a 2.ª Guerra. Ao invés de um nacionalismo econômico de soma zero, projetou-se uma cooperação global de soma positiva, na qual cada país venderia livremente o que produz de melhor para comprar o que os outros produzem de melhor, participando um do sucesso do outro, fortalecendo laços de confiança e cimentando a estabilidade geopolítica. Com a queda do Muro de Berlim, esse movimento, até então circunscrito ao Ocidente e seus parceiros, assumiu um caráter verdadeiramente global. Nunca na história humana a pobreza, o analfabetismo e a mortalidade infantil caíram tanto como nos últimos 35 anos.
A experiência histórica do protecionismo, ao contrário, é de desaceleração do crescimento e atritos geopolíticos. Barreiras à importação encarecem bens de consumo e produção, desestimulam a inovação e a competitividade e convidam outros países a erguer barreiras às exportações. Como explicar essa espécie de masoquismo econômico nos EUA?
É matematicamente demonstrável que os benefícios para países ricos ou pobres que se integraram mais à economia global superaram os custos. No entanto, os benefícios são diluídos entre todos; os custos frequentemente são concentrados em alguns grupos – como operários industriais nos países ricos, os “deixados para trás”. Outra razão são as falhas no sistema. A China, por exemplo, se beneficiou do livre comércio, mas frequentemente burlando as regras com subsídios e dumpings.
Ainda assim, os benefícios para um país como os EUA, a economia que mais cresceu no G-7, superaram largamente os custos, e a racionalidade demandaria reformas no sistema. Se Trump decidiu implodi-lo é por uma lógica política. Ele crê que, sem regras, o poder econômico e militar dos EUA lhe garantirá melhores negócios. Nos últimos 20 anos a sensação de insegurança aumentou após a irrupção da crise financeira, mudanças climáticas, pandemia e guerras, e os populistas habilidosos sabem excitar os medos ao ponto da paranoia para concentrar mais poder.
“Muros” e “proteção” estão por toda parte na agenda trumpista. Não só nas suas políticas comerciais, mas geopolíticas, imigratórias e culturais, Trump está sempre obstruindo fluxos de ideias, contatos, alianças. “A essência da agenda de Trump poderia ser: não gostamos desses malditos estrangeiros”, resumiu o articulista do The New York Times David Brooks.
Os EUA foram uma nação erguida por estrangeiros e, como todas as grandes nações da História, fizeram-se grandes fazendo negócios com outras nações. O isolacionismo não fará o país grande de novo, ao contrário. Mas, se os EUA renunciam às razões de sua grandeza, o resto do mundo não precisa seguir esse caminho.
Os EUA, que dão as costas ao livre comércio, e a China, que o distorce, são grandes. Mas justamente um dos benefícios da globalização foi que a fatia das duas potências juntas no comércio global diminuiu nos últimos 20 anos. Se as nações amigas do livre mercado souberem reverter a fragmentação e cimentar blocos cada vez maiores baseados numa competição justa e aberta, têm uma chance de trazer os EUA de volta à razão e disciplinar o capitalismo de Estado chinês, para benefício de todos. Se não, elas serão, para triunfo de Trump, artífices do fim da globalização.