Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Trump no banco dos réus

O caso prova a integridade da política e da Justiça. Os políticos precisam se provar capazes de separar o que é da política e o que é da Justiça. A Justiça precisa se provar apartidária

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

O Estado Democrático de Direito norte-americano enfrentará um imenso desafio. Na última terça-feira, pela primeira vez na história, um ex-presidente dos Estados Unidos foi indiciado por crime. Entre as quatro investigações penais que correm contra Donald Trump, a acusação da Procuradoria de Nova York de violação de regras de financiamento eleitoral é a menos grave. Mas já está sendo conclamada por democratas e republicanos como uma batalha pela “alma da nação”. A conduta do mundo político e jurídico pode revitalizar as bases da democracia e da Justiça nos EUA, mas também pode degradá-las a um ponto inaudito.

O caso está sob sigilo e os detalhes só virão a público nos próximos dias. Mas sabe-se que a denúncia do procurador de Manhattan, Alvin Bragg, envolve o pagamento a uma atriz pornô, durante as eleições de 2016, para que ela mantivesse confidencialidade sobre um relacionamento que teria tido com Trump. O dinheiro foi pago pelo advogado de Trump, registrado pela campanha como “despesas legais” e reembolsado pelo candidato. A expectativa é que a procuradoria acuse Trump por ter doado dinheiro para a própria campanha sem declará-lo.

Mesmo que seja condenado, as apelações podem se estender por anos. Enquanto isso, Trump seria elegível. A Justiça não tem pressa. Mas a política tem. O choque sísmico foi imenso. Trump não só é um ex-presidente, mas o favorito a vencer as primárias da oposição republicana para as eleições de 2024.

Trump já tinha antecipado publicamente o indiciamento e o acoplou – com as alegações de conluio com os russos, dois impeachments malogrados e a busca e apreensão pelo FBI de documentos secretos em sua casa – ao seu rol de acusações de “perseguição política”. Previsivelmente, ele explorará o caso para promover sua narrativa de líder do povo vitimado pelas elites entranhadas em um deep state corrupto.

Os excessos democratas podem lhe dar de bandeja a alavanca para resgatar a popularidade com os republicanos que, como se viu nas últimas eleições, vinha se deteriorando. Para muitos estrategistas democratas isso seria conveniente. Como sugeriu o Wall Street Journal, “eles creem que ele seria o candidato mais fácil de vencer porque ele motiva os democratas e divide os republicanos e independentes”.

Há ampla artilharia para escalar a guerra cultural: um caso extraconjugal que ecoa os imbróglios de Bill Clinton; um procurador negro que já foi chamado por Trump de “animal”; e, para piorar, há um complicador constitutivo do sistema de Justiça americano: os procuradores são eleitos, e Bragg concorreu pela sigla democrata. O risco de que o caso seja instalado no centro do debate político arrastando todas as questões de interesse público para uma batalha campal é imenso.

Será um teste à integridade de republicanos e democratas. Os primeiros têm o desafio de provar seu compromisso irrestrito com a lei e a ordem; os segundos, de refrear a tentação de solucionar divergências políticas por meios penais, que só as agravarão.

A grande responsabilidade recai sobre os ombros da Justiça. Ninguém está acima da lei. Se há indícios de crime, mesmo um ex-presidente e candidato à presidência deve responder como qualquer cidadão, sejam quais forem as repercussões políticas e sociais. Procuradores e juízes precisam conduzir o caso com técnica e isonomia, sem olhar a capa do processo nem tergiversar sobre os ritos, aplicando a lei sem leniência, para não deixar ninguém impune, mas também sem excesso, para não criar mártires.

O precedente será crucial para os outros casos penais envolvendo Trump – sobre a posse de documentos sigilosos; sobre as alegações de fraude eleitoral que precederam aos ataques do 6 de Janeiro; e a acusação de interferir nos resultados eleitorais da Geórgia. A Justiça deve ser cega. Mas a gritaria em seus ouvidos à direita e à esquerda será ensurdecedora. Sem dúvida, o procurador de Nova York demonstrou coragem. Será decisivo para os destinos de seu país que ele se sobressaia ainda mais nas outras virtudes cardeais: temperança, prudência e, acima de tudo, justiça.