De forma impressionante, mas não surpreendente para um país que se acostumou a ver transgressões morais e políticas em Brasília, há muita coisa fora do lugar nas tratativas envolvendo o projeto que anistia os condenados pelos ataques golpistas do 8 de Janeiro. Como se viu esta semana, o PL protocolou o requerimento que pede urgência na tramitação e votação do projeto, com a subscrição de 262 parlamentares, cinco a mais do que o necessário para que o pedido se torne apto a ser votado. Ainda que o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), não seja obrigado a pautá-lo, o número de assinaturas é uma forma de demonstração do apoio à matéria dentro da Casa legislativa. Um assombro que se avizinha conforme se aproxima o julgamento do maior beneficiário do projeto e maior golpista de todos – o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Foi com igual assombro que se constatou que mais da metade da lista de entusiastas com a celeridade do chamado PL da Anistia é composta por integrantes da base de apoio ao governo do presidente Lula da Silva: 55% são de partidos com ministérios e 61% são filiados a siglas da base governista, em geral contemplados com cargos de segundo escalão. Aparecem na lista deputados do União Brasil (40), Progressistas (35), Republicanos (28), PSD (23) e MDB (20). Em reação à adesão de “aliados” – vamos chamá-los assim por ora –, a caciquia do Palácio do Planalto já acenou com um trunfo a que governos fisiológicos costumam recorrer para atrair o voto de parlamentares ou inibir traições à vista: o mapa de cargos e indicações já feitas por deputados em órgãos federais nos Estados.
Com o tal mapa em mãos, o governo tentará demover governistas, desmobilizar a anistia e evitar que o avanço da matéria termine por beneficiar o maior adversário de Lula da Silva. Enquanto isso, há relatos de que até mesmo parlamentares que apoiam a urgência do projeto na Câmara não têm certeza ou consenso sobre o alcance efetivo do projeto em questão, isto é, de qual grau de abrangência da anistia se estará tratando caso o PL avance.
Eis Brasília em estado puro: uma Câmara dos Deputados às voltas com um projeto de lei que até aqui não mobilizou a sociedade em sua defesa, um ex-presidente que dá tratos à bola para driblar a lei e a Constituição e livrar da cadeia os que conspiraram para tentar destruir a democracia, uma base governista desalinhada ao governo e um presidente que, incapaz de manejar bem sua coalizão multipartidária, finge que divide a gestão com aliados – e estes, em troca, deixam de seguir a orientação de Lula da Silva em diversas votações e diretrizes.
Não é novidade que a base do atual mandato é heterogênea, frágil e hostil. Igualmente conhecido é o fato de que, estimuladas pelos amplos poderes adquiridos nos últimos anos pelas emendas parlamentares – que lhes deram força inédita sobre o Orçamento da União –, as bancadas passaram a se mobilizar menos por cargos e verbas oferecidos pelo governo de ocasião. Mas falta ao governo reconhecer o óbvio: as dificuldades que enfrenta, no tema da anistia e em muitos outros, decorrem também de um problema crônico desde o primeiro mandato lulopetista, isto é, a incapacidade de Lula da Silva e do PT de dividir o poder. Todos os partidos que têm parlamentares subscrevendo a urgência do PL da Anistia, contra a vontade do governo, são mais do que meramente “governistas”: têm quadros chefiando ministérios. Para quem se sente desprestigiado pelo demiurgo petista e seu partido, isso pouco importa.
O que se assiste é consequência inevitável, ainda que odiosa, desta soma de disfuncionalidades e equívocos. No passado havia uma máxima vigente nos corredores do Congresso: “Aqui tem de tudo. Tem ladrão, honesto, canalha, gente séria. Só não tem bobo”. Enquanto o governo patina no mau manejo com o Congresso, felizmente, até aqui, o presidente da Câmara, Hugo Motta, tem resistido bravamente a colocar o PL da Anistia em pauta, mas, sob pressão e evitando decidir sozinho, já teria aberto a possibilidade de levar o projeto à discussão no Colégio de Líderes. Maus presságios para uma Casa que tem de tudo, só não tem bobo.