Na última sexta-feira, a poucos dias da posse de Donald Trump, um juiz de Nova York, Juan Merchan, manteve uma condenação criminal do júri ao presidente eleito dos EUA, tornando Trump o primeiro condenado a ocupar a Casa Branca.
Contudo, foi uma sentença estranha em tempos estranhos, pois Trump foi “incondicionalmente” dispensado de qualquer pena, já que será em breve o presidente dos EUA. Eis aí o dilema que populistas como Trump representam para o Estado Democrático de Direito: a lei, expressão da vontade popular, deveria valer para todos, mas esses líderes autoritários invocam a vontade popular expressa nas urnas para se tornarem inimputáveis.
Há um ano, Trump respondia a quatro processos criminais. Em maio foi condenado por unanimidade por 12 jurados em Nova York por 34 acusações de falsificação de registros contábeis para disfarçar pagamentos durante as eleições de 2016 a uma atriz pornô para que mantivesse silêncio sobre um alegado relacionamento sexual. As condenações deveriam acarretar desde multas até liberdade condicional – e, no limite, quatro anos de prisão. Um levantamento do jornal New York Times revelou que, de 30 condenações por falsificação de registros em Nova York na última década, nenhum outro réu recebeu uma dispensa incondicional.
Esse não foi o único passe livre da Justiça conferido a Trump. O republicano foi indiciado na Flórida por dispor ilegalmente de documentos confidenciais e no Distrito de Columbia pelas suas tentativas de subverter os resultados das eleições de 2020. Se tivesse perdido as eleições em novembro, teria sido julgado por ambas as acusações e, se condenado, também poderia ir para a prisão. Mas as acusações foram dispensadas em razão de uma regra do Departamento de Justiça de que um presidente em exercício não pode ser processado. De resto, numa decisão que deve ter feito os Pais Fundadores dos EUA se revirarem no túmulo, a Suprema Corte determinou que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo.
Tudo isso obviamente é inconciliável com a noção basilar do Estado de Direito segundo a qual ninguém está acima da lei. A incompatibilidade ficou evidente nos esforços do juiz Merchan por resolver a quadratura do círculo.
Trump insiste que não fez nada de errado e em seu perfil nas redes sociais trombeteou que a sentença “prova que não há um caso”. Mas não foi o que disse a Justiça. Seus advogados tentaram bloquear a sentença nas cortes de apelação e na própria Suprema Corte, alegando que um presidente eleito gozava da mesma imunidade de um presidente em exercício, mas o pedido foi rejeitado em todas essas instâncias.
Explicitamente nas falas de Trump e implicitamente nos recursos estava a ideia de que ele fora absolvido pelo “veredicto do povo” dado nas eleições de novembro. Mas as urnas não podem apagar o legítimo veredicto do povo (sem aspas) dado pelo júri. Merchan não poderia se furtar a esse veredicto sem rasgar a toga, mas reconheceu ser impraticável um presidente exercer suas funções por trás das grades.
Trump, portanto, não será penalizado, mas ainda assim é um criminoso condenado. A sentença tenta preservar as aparências de que há alguma justiça, mas demonstrou que ela efetivamente não é igual para todos.
Como todo populista à direita, Trump se vangloria de ser o paladino da lei e da ordem. Mas, no que promete ser mais um teste de estresse do Estado Democrático de Direito de seu país, ele já anunciou que pretende empregar seus poderes presidenciais para perdoar os condenados pelo infame assalto ao Capitólio no 6 de Janeiro, passando a mensagem de que a violência política é aceitável se praticada a favor de quem está no poder.
“Sem precedentes” é uma expressão que se tornou corriqueira ao longo da carreira política de Donald Trump. Um ex-presidente condenado por crime foi sem precedentes, e a posse de um presidente condenado por crime será sem precedentes. Agora, a condenação sem pena ilustra mais uma vez a tensão sem precedentes entre o Estado Democrático e o Estado de Direito provocada por um presidente que, contra todos os anseios dos fundadores da República americana, quer governar como um rei.