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Um prêmio à memória

Ao premiar o talento de Fernanda Torres, Globo de Ouro dá ainda mais visibilidade ao horror da ditadura

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Por Notas & Informações
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O Globo de Ouro de Melhor Atriz concedido a Fernanda Torres não é apenas a coroação de um trabalho sublime da artista brasileira, cuja atuação tocante no filme Ainda Estou Aqui permitiu que ela, mesmo falando em português, se sagrasse vencedora em uma disputa com intérpretes anglófonas da qualidade de Tilda Swinton, Kate Winslet e Nicole Kidman. O feito de Fernanda Torres e do filme que ela estrela vai além da consagração artística: serve para levar ao mundo a história dos horrores da ditadura militar brasileira – da qual muitos por aqui sentem saudade.

Como se sabe, Ainda Estou Aqui conta a história da prisão e do desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971, durante o auge do regime militar, e de como sua mulher, Eunice Paiva, lidou com a truculência da ditadura ao mesmo tempo que tinha de proteger os filhos e reinventar sua família.

Trata-se de uma história particularmente simbólica: Rubens Paiva foi preso e morto nos porões da ditadura mesmo sem ter qualquer participação relevante na resistência ao regime. Na madrugada de 1.º de abril de 1964, quando o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart estava em curso, Paiva, então deputado pelo PTB, fez um discurso na Rádio Nacional em que apelou aos brasileiros que se mobilizassem “tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade”. Foi cassado e se exilou na Europa. Em 1965, já de volta ao Brasil, continuou a manter contato com outros exilados, mas havia deixado de vez a política, limitando-se a trabalhar como engenheiro e a cuidar da família, no Rio de Janeiro.

Ou seja, nem Rubens Paiva nem seus amigos representavam qualquer ameaça ao regime militar – e mesmo se fossem, não haveria justificativa para que Paiva sumisse enquanto estava sob custódia do Estado. Mas ditadores são paranoicos e, nessa condição, quebram a bússola moral, tornando-se capazes das piores atrocidades em nome da defesa de uma certa “pátria” contra inimigos que eles inventam – situação na qual ninguém está seguro.

Como o filme mostra, os militares foram não só capazes de prender, torturar e matar um pai de família inocente, como atormentaram a mulher dele, aterrorizaram os filhos do casal e mentiram descaradamente por anos a fio sobre o destino de Rubens Paiva. Cada um dos espectadores sente-se colocado no lugar dos integrantes daquela pacata família de classe média subitamente arrancada de seu mundo e atirada no pesadelo da ditadura – em que as leis deixam de valer, para dar lugar ao arbítrio dos pequenos tiranos a quem o regime deu poder de vida e morte sobre os cidadãos.

É aqui que entra a genialidade de Fernanda Torres, capaz de dar vida e alma a uma Eunice Paiva que resolveu não se vergar à tirania nem deixar que o Brasil esquecesse. Se os críticos que a premiaram nos Estados Unidos perceberam isso, não se sabe; já os brasileiros que lotam as salas de cinema para homenagear a resistência silenciosa e tenaz de Eunice sabem muito bem o que isso significa: que a luta pela manutenção da democracia, em tempos bolsonarianos, é longa, diária e sujeita a trancos, mas vale a pena.