Não durou mais que algumas horas a possibilidade levantada pelo governo de revisar o regulamento dos prazos para consumo de produtos alimentícios. É um exemplo de uma discussão pertinente nascida pelos motivos errados e morta pelos motivos errados.
A proposta integra um pacote de medidas sugerido em julho passado por associações da indústria de alimentos e supermercados, e implica a adoção de um modelo de rotulagem similar ao de países como EUA, Canadá e Reino Unido. Produtos estáveis em temperatura ambiente, como biscoitos, macarrão, grãos ou enlatados, poderiam conter indicações do tipo “ideal para consumo até a data X”. Isso porque esses produtos tipicamente perdem certas qualidades após um certo período – por exemplo, a crocância dos biscoitos –, mas o prazo para o consumo seguro pode se estender muito além disso.
Ante a escalada da inflação dos alimentos, o governo, mais perdido que cachorro em dia de mudança, se move por tentativa e erro, e chegou a aventar essa proposta no conjunto de medidas estudadas para baratear preços. Mas, traumatizado após a sova da oposição nas redes sociais durante a “revolta do Pix”, logo a descartou.
Evidentemente, a ideia de oferecer “comida vencida” ou “picanha podre para pobre” é um prato cheio para a oposição, e pode-se imaginar o que os petistas fariam se estivessem em posição trocada. Na verdade, nem é preciso imaginar. Durante a pandemia, o governo de Jair Bolsonaro chegou a sugerir algo semelhante. Imediatamente as redes petistas foram inundadas com acusações de “higienismo” e perversidade “antipobre”.
Assim como não cabe ingenuidade em relação às estratégias marqueteiras de governo e oposição, tampouco cabe em relação aos interesses do varejo. A medida, por si só, não levaria necessariamente a preços menores para o consumidor. Seguramente ela não teria nenhum efeito sobre a inflação. Mas, acompanhada de outras, poderia ter alguma utilidade para atender populações carentes e, sobretudo, para minimizar o desperdício de alimentos.
A ONU estima que algo como 800 milhões de pessoas (10% da população mundial) sofra com subnutrição crônica, ao mesmo tempo que cerca de um terço de todos os alimentos produzidos no mundo é perdido ou desperdiçado – o suficiente para alimentar 1 bilhão de pessoas. Não há uma causa ou um culpado, mas muitos. Descontadas as perdas durante a produção, a ONU estima que 13% da comida seja desperdiçada no varejo; 26%, nos serviços de alimentação; e 61%, nas casas.
Reduzir as perdas e desperdícios implicaria ganhos como aumento da produtividade e crescimento econômico, mais segurança alimentar e nutrição e mitigação de impactos climáticos. Calcula-se que o desperdício de alimentos seja responsável por 8% a 10% das emissões globais de carbono, pelo menos o dobro das emissões da aviação.
Nesse contexto, diversos países vêm promovendo iniciativas para prevenir o desperdício ou reaproveitar alimentos. Há startups que facilitam a compra a preços mais baixos de produtos rejeitados pelos supermercados como defeituosos – às vezes por razões puramente estéticas, mas aptos ao consumo. Há aplicativos que oferecem descontos em comida de restaurantes prestes a ser jogada fora. Na França e na Califórnia, foram promulgadas leis que obrigam supermercados e restaurantes a doar alimentos consumíveis que seriam descartados.
Um sistema de informações nas embalagens diferenciando entre o prazo para um consumo de qualidade e o prazo para o consumo seguro poderia embasar medidas desse tipo, seja no varejo, para oferecer produtos a menores preços ou para doação, seja nas casas, para evitar o descarte de alimentos aptos ao consumo. As associações de produção e varejo estimam que isso poderia gerar uma economia de R$ 3 bilhões ao ano em comida desperdiçada.
O problema da perda de alimentos é complexo e as soluções exigem a coordenação de múltiplos atores, desde o governo, passando por produtores, vendedores e consumidores, até a infraestrutura de compostagem e reciclagem. Por isso mesmo, é lamentável desperdiçar, no brejo das picuinhas políticas, uma discussão que poderia contribuir para reduzir o desperdício.