A nova guerra fria está esquentando rapidamente. A escalada é notável: as tarifas mútuas entre EUA e China sobre exportações, que estavam na casa de 20% para cerca de 60% dos produtos comercializados no começo deste ano, agora estão acima de 100% para 100% dos produtos. E nesse jogo irresponsável de truco, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou uma inacreditável tarifa de 125% contra a China. Na prática, a escalada tarifária deflagrada por Trump entre as duas maiores economias globais significa um embargo mútuo repentino, com consequências imprevisíveis em se tratando de economias tão profundamente imbricadas. É estupidez em estado puro.
Se na guerra a primeira vítima é a verdade, nas guerras comerciais a primeira vítima é a economia, e as nuvens de uma recessão global se avolumam no horizonte. Será ruim para todos. Mas para os EUA tende a ser um desastre histórico, enquanto para a China pode ser uma oportunidade de emergir mais forte. Em teoria, ou ao menos na teoria de Donald Trump, a sua ofensiva tarifária está pressionando a China a corrigir abusos comerciais, ao mesmo tempo em que os EUA tentam isolá-la geopoliticamente. Na prática, Trump pode estar fazendo o exato oposto.
A China tem entraves estruturais sérios como crescimento insuficiente, deflação, bolha imobiliária e declínio demográfico. Esses problemas foram agravados pela pandemia e ainda mais pelas intervenções autoritárias do Partido Comunista Chinês sobre o empreendedorismo e pelas tensões políticas crescentes com parceiros comerciais. Até o “Dia da Libertação” de Trump, em que o tarifaço foi anunciado, a China estava tentando reduzir as hostilidades. Agora, promete “lutar até o fim”. Mas, se os chineses têm vulnerabilidades, têm pelo menos duas grandes vantagens comparativas.
Primeiro, a China é uma ditadura. O regime já vinha se preparando para o impacto, e tem meios de intervenção na economia, como a desvalorização do câmbio, se precisar desaguar em outros países as exportações barradas pelos EUA. Mais importante, o Partido Comunista Chinês pode suportar as dores do desemprego ou da elevação do custo de vida por um longo período de tempo, enquanto um governo como o americano é pressionado pelos humores da população, do mercado, por ações judiciais e possivelmente, após as eleições daqui a 18 meses, por um Congresso dominado pela oposição. Certamente, mesmo governos autoritários precisam de algum grau de legitimação popular, mas, como em toda guerra, o moral é um fator crucial, se não o principal, e o regime chinês pode sempre alegar à sua população que é o seu país que está sendo agredido, o que é verdade, enquanto Trump precisa justificar a um eleitorado dividido uma iniciativa amplamente recriminada pelos economistas.
Mas ainda mais importante é que, se a guerra da China é apenas contra os EUA, a guerra dos EUA é contra o mundo. Num momento em que a China estava vulnerável e vários países do mundo começavam a reavaliar suas relações econômicas com Pequim, Trump abriu fogo contra todos – adversários e aliados. Na Ásia, países que vinham tentando diversificar seu comércio além da China, como Vietnã, Camboja, Tailândia, Indonésia, além de velhos aliados americanos, como Coreia do Sul e Japão, foram todos bombardeados com tarifas elevadas. O mesmo vale para a Europa. Ao invés de isolar geopoliticamente a China, os EUA estão empurrando aliados e adversários para a sua órbita – e ainda por cima empobrecendo a sua própria população. Mesmo que haja pausa nas tarifas contra alguns desses países, como anunciou Trump, o estrago na reputação americana já está feito.
A credibilidade dos EUA está sendo arruinada, e a China, com maior ou menor razão, se apresentará cada vez mais como um porto seguro econômico e geopolítico. Há muito tempo a propaganda do Partido Comunista Chinês promove sofregamente a ideia de que o Ocidente é decadente, egoísta e está dividido contra si mesmo. Agora pode jogar parado, enquanto Trump se encarrega de provar que os chineses estão certos.