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Violação contínua de direitos

Desde 2008 o CNJ realiza ‘mutirão’ para tirar da cadeia quem já não deveria estar lá. O fato de que todo ano essa ação é necessária mostra que o sistema de Justiça funciona muito mal

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Por Notas & Informações
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As prisões do 8 de Janeiro suscitaram, ao longo deste ano, muitos questionamentos sobre a legalidade e a efetiva necessidade da medida preventiva, bem como sobre o respeito aos direitos humanos das pessoas envolvidas nos atos antidemocráticos. De fato, o sistema prisional brasileiro é não apenas precário, mas desumano e degradante. Em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) qualificou a situação dos presídios como “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do poder público. Dessa forma, é equivocado achar que o Estado viola direitos apenas em situações pontuais, numa espécie de perseguição contra determinados grupos políticos ou ideológicos. O problema é muito mais grave, muito mais abrangente.

Um dos grandes sintomas da violação contínua dos direitos fundamentais por parte do poder público é a necessidade de realizar periodicamente os mutirões carcerários. Neste ano, a previsão é de que o mutirão revise, nos meses de julho e agosto, mais de 100 mil processos. Essa revisão não é uma análise complexa, verificando, por exemplo, se houve algum erro judicial no processo ou se a jurisprudência dos tribunais superiores foi aplicada no caso concreto. O tema é mais básico. Trata-se tão somente de verificar, por exemplo, se a pessoa deveria estar solta, mas ainda está presa ou se tem direito a um regime de pena mais benéfico que, por erro, não lhe foi concedido.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou o primeiro mutirão carcerário em 2008 e, desde então, promove esse esforço concentrado de revisão num determinado período do ano. Eis o fato absolutamente constrangedor. Infelizmente, continua havendo muitas situações ilegais dentro dos presídios. O Estado não apenas pune o crime, mas também produz, ele mesmo, ilegalidades contra as pessoas presas. E isso, que deveria ser corrigido de forma habitual e imediata, é tão volumoso que demanda do poder público uma medida excepcional, o mutirão carcerário.

Nos últimos anos, a sistemática do mutirão foi modificada. Entre 2008 e 2014, juízes eram deslocados para diferentes unidades da Federação, para analisar a situação processual das pessoas que cumpriam pena e inspecionar unidades carcerárias. Agora, não há esse deslocamento. São os magistrados da própria unidade que fazem a revisão dos processos. Entre outros motivos, essa simplificação da sistemática foi possível graças ao aperfeiçoamento tecnológico implementado pelo CNJ. Há uma ferramenta que centraliza e unifica a execução penal em todo o País.

De toda forma, a implementação da tecnologia continua coexistindo com violações sistemáticas de direitos das pessoas presas. E, não se pode esquecer, uma vez que segue havendo nos presídios situações degradantes e desumanas, inspeções com juízes de outra unidade da Federação são uma oportunidade para trazer à tona esse gravíssimo problema.

O mutirão deste ano tem como temas prioritários o tratamento de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças menores de 12 anos e pessoas com deficiência; o cumprimento de pena em regime prisional mais gravoso do que o fixado na sentença condenatória; a situação de presos condenados pela prática de tráfico privilegiado e que estão cumprindo pena em regime não aberto; e os casos de prisões provisórias com duração superior a 12 meses.

É louvável que o CNJ promova esse tipo de ação, mas não se pode ignorar que o cuidado com os direitos das pessoas que estão sob o domínio do Estado deve ser medida habitual, corriqueira. Se todo ano o mutirão é necessário, isso é a prova de que o sistema está funcionando mal, com a produção ininterrupta de novas ilegalidades e de novas injustiças.

O mutirão carcerário revela também o real estado do direito de defesa no Brasil. Apesar da atuação da Defensoria Pública, frequentemente heroica, muitos presos continuam não dispondo de uma assistência jurídica adequada. Se tivessem seus direitos bem representados, não seria necessário nenhum mutirão.