Ingredientes brasileiros no centro do debate: a última edição do Paladar Cozinha do Brasil, que ocorreu neste final de semana no Espaço Priceless, foi marcada pela celebração e exuberância da simplicidade da nossa cozinha.
A mandioca, a pupunha, o cacau, o café, o jambu, a farofa, entre outros alimentos corriqueiros, foram os protagonistas dos painéis comandados pelos chefs convidados que, sem combinarem, entoaram o lema “valorizar o nosso”. Para eles, assim como para o Paladar, para enaltecer, antes, é necessário conhecer a diversidade da cozinha brasileira. Foi um exercício de volta ao passado, um olhar para dentro, para vislumbrar o futuro.
As salas cheias e os participantes atentos a cada palavra dos especialistas só comprovou algo que já suspeitávamos há algum tempinho: a comida brasileira é despretensiosamente maravilhosa – as farofas preparadas no painel da chef Helô Bacellar não nos deixam negar.
Da pâtisserie ao tupi
O pontapé inicial do evento foi dado por ninguém menos que o chef-confeiteiro Lucas Corazza, com um painel instigante: o ‘Pupunha não é só palmito’. Provocador por natureza, Corazza antecipou aos participantes o que viria pela frente. “A sobremesa que vou ensinar hoje não é para agradar, mas sim para provocar, para vocês descobrirem algo novo, é um desafio, não um afago”.
De cara, aprovamos! Um dos compromissos do Paladar Cozinha do Brasil, desde de sua primeira edição, é trazer novos debates ao redor da mesa. O novo, neste painel, era o fruto da pupunha, a palmeira brasileira, típica no Norte do País, que é conhecida e reconhecida pelo seu palmito, mas não seu fruto.
O fruto é tradicionalmente consumido, após ser cozido em água com sal e servido com café às tardes na sua região. A textura fibrosa e o sabor predominantemente amargo e um tanto adstringente são pouco familiares para os acostumados com os sabores mais adocicados. Daí o tom desafiador do chef já desde o começo do painel.
Além de apresentar o ingrediente aos participantes, Corazza levantou outra bandeira importantíssima nos dias atuais, o uso integral dos alimentos, a necessidade de aproveitamento total dos ingredientes que os chefs colocam nos seus pratos, cardápios.. Não podemos mais falar de gastronomia sem tocar no assunto desperdício de alimentos.
Para familiarizar os participantes, Lucas decidiu apresentar uma versão com sabores e texturas menos agressivas e um pouco mais harmônicos. Para isso, colocou seu domínio da confeitaria francesa em prática e criou o Monte Brasilis, uma releitura do Mont Blanc, receita típica do Natal francês que combina marron glacê, chocolate e chantilly.
Na receita de Lucas, saíram as castanhas portuguesas, entraram as pupunhas que seguiram o rito de produção do marron glacê. O resultado foi um creme de cor alaranjado vibrante que finalizou a massa sucrée de cacau, recheada com chantilly de café e cumaru. “A ideia foi transportar o comensal diretamente a experiência que vivi ao comer o fruto pela primeira vez com café em uma fazenda de pupunhas”.
+Confira a receita do Monte Brasilis aqui
Missão cumprida chef! Ao final da aula os participantes estavam ansiosos para provar a receita. Aprovaram o doce feito com o fruto da pupunha, e ainda se debruçaram na bancada para raspar as panelas e até se arriscaram a provar o fruto em natura.
É permitido fermentar
Não é preciso muito para começar a fermentar vegetais em casa! Foi o que mostrou a dupla Fernando Goldenstein e Leonardo Andrade, da Companhia dos Fermentados, no segundo painel de sábado.
É simples: regra número 1, cortar o contato do vegetal com o oxigênio ao submergir na água. Regra número 2, adicionar sal, um inibidor das ações das bactérias, “ele irá dirigir o processo de fermentação” explica Leo. “Fermentação é um processo democrático: todo mundo pode e deve fazer em casa”, afirma a dupla.
Para demonstrar o lema, a dupla resolveu aplicar a técnica a uma velha conhecida da mesa do brasileiro, a mandioca. Contando a história do ingrediente no Brasil, passando por técnicas e instrumental ancestrais e explorando os diversos subprodutos do tubérculo fermentado, o painel já teve início com uma provocação: “Quem aí já comeu mandioca fermentada?”
O “não” respondido pela maioria do público, foi rapidamente contestado pelos palestrantes: “Costumamos dizer, o Brasil não conhece o Brasil, somos ignorantes dos nossos processos ancestrais”. A dupla então explicou que a mandioca fermentada é, por exemplo, ingrediente principal do polvilho azedo, utilizado em todo o Brasil para fazer nosso amado pão de queijo.
Explicações históricas, científicas e gastronômicas foram entrelaçadas neste painel que teve a puba como estrela. Além de mostrar como fermentar a mandioca para obter a puba, a dupla usou o ingrediente como base para um bolo, que levou ainda goiabada e coco ralado. O público também pode experimentar um vermute de caju com botânicos brasileiros.
+ Confira como fazer um bolo e um pudim de puba
O leve amargor dos botânicos do vermute e a textura um tanto elástica do bolo endossaram a provocação feita no primeiro painel por Lucas Corazza, que, aliás, ficou por ali para ver a aula dos colegas. A necessidade de investigar os produtos nacionais e, acima de tudo, de submeter o paladar ao novo.
De quebra, eles ainda ensinaram como fazer o arubé caseiro, um molho de pimenta fermentada com mandioca crua.
Imersão na Amazônia
No final de tarde de sábado, o mixologista Ale D’Agostino ocupou o terraço do Espaço Priceless para uma aula de drinques, tendo como protagonista o jambu, erva brasileira típica da Amazônia, conhecida pelo poder de adormecer a língua. As características marcantes da erva, a tornam um desafio para qualquer bartender, mas foi justamente isso que atraiu Alê:. “Um grande drinque deve ter antes de tudo equilíbrio, e o jambu pede sabedoria ao entrar na coqueteleria”, explicou.
Desafio aceito, o mixologista decidiu utilizar a estrutura de um martini para criar o Jambutini, feito com cachaça de jambu, gim, vermute seco e flor de jambu, que substituiu a azeitona.
O passeio pela Amazônia seguiu com um jantar especial no Notiê, o principal restaurante do Espaço Priceless. O chef da casa, o paraibano Onildo Rocha serviu um menu-degustação de cinco etapas, que teve como inspiração uma expedição pela região da Amazônia. “O que eu mais queria era entender como os indígenas e as pessoas do entorno usam esses ingredientes no dia a dia”, explicou.
Ao lado da jornalista gastronômica Patrícia Ferraz, que conduziu a conversa, Onildo contou como suas pesquisas e experiências na Amazônia serviram para desenhar o menu, que festejou os ingredientes da região em pratos como hummus de feijão de praia, dumpling de camarão, servido com ponzu de galinha e tempurá de jambu, pirarucu com ervas aromáticas, vitória régia e purê de açaí e canelone de pato com caldo de tucupi.
Simples, mas não simplório. Alguns nomes parecem velhos conhecidos, outros nem tanto, mas nas mãos de Onildo se transformam em verdadeiras obras gastronômicas. “Muitas pessoas ainda não conseguem entender que são esses os ingredientes mais ricos que temos, exatamente porque eles são abundantes no nosso País, não preciso de nenhum produto importado para fazer alta cozinha” afirmou o chef.
Encerrou a noite uma sobremesa que sintetiza um pouco de tudo isso, sorvete de taperebá, coco verde e um curry amazônico preparado com mais de 16 ervas diferentes. Ao final do primeiro dia, estomago e mentes cheias!
Café para acordar
Como falar de gastronomia brasileira e não falar de café? O grão faz parte da história nacional e é um dos nossos grandes produtos de exportação. Mas sua importância não quer dizer que tenha sido sempre bem tratado, por muitos anos o café não recebeu atenção proporcional a sua história, relegado à produção de massa sem grande preocupação com a qualidade. Hoje, no entanto, graças ao trabalho de muitas pessoas, do campo ao barista, o grão predileto dos brasileiros está em uma de suas melhores safras.
Uma das responsáveis por essa virada é a barista e proprietária do Coffee Lab Isabela Raposeiras, a quem coube abrir os trabalhos do evento no domingo. Precursora no estudo e na caça de micro lotes de grãos especiais Brasil afora, ela começou sua aula com uma pergunta que já é praxe nas suas falas: “Quem aí conhece ou já provou café especial?”
Grande parte do público levantou a mão! A barista tem o questionamento como uma espécie de termômetro do mercado consumidor, e as respostas têm sido cada vez mais favoráveis. “É uma grande alegria ver essa evolução, anos atrás, nesse mesmo evento, a porcentagem era muito menor, e agora cada vez mais, mais pessoas já conhecem e consomem café especial. É um ótimo sintoma”.
Isabela conta que começou a beber café já na mamadeira. O fato por si só já explica muito da formação de um paladar tão aguçado e afiado, que hoje em dia degusta grãos por todo o País, identificando não só os mais diversos aromas, mas também os defeitos nas produções.
Os participantes puderam provar, lado a lado, diferentes estilos de torra e grãos do Brasil, Isabela explicou as nuances e correlações destas diferenças, além de ensinar como identificar corpo, doçura e acidez.
Cacau que já não é mais tão selvagem assim
Se na última edição do Paladar Cozinha do Brasil, em 2015, o tema cacau selvagem brasileiro era debatido por pequenos produtores e pesquisadores que haviam a pouco começado a explorar o terreno. Não deveria ser surpresa para ninguém, que agora, oito anos depois, ele já seja o assunto principal da aula da chef Carla Pernambuco.
Ao lado da sua filha, a pesquisadora Floriana Breyer, elas apresentaram uma verdadeira viagem por este universo, que chamaram de “Experiências Sinestésicas com Cacau Selvagem” e mostraram que nem só de chocolate vive o fruto.
A ideia da dupla foi “explodir” o cacau e mostrar as mil e uma possibilidades que esse ouro amazônico proporciona. Além de sua polpa, a dupla apresentou aos participantes os seus subprodutos, como nibs, o mel de cacau, a manteiga e o líquor, incorporando-os em receitas, do coquetel à sobremesa.
Antes de ir aos preparos, fizeram um breve panorama do Theobroma cacao, nome científico desta pequena árvore, chamada de sagrada por maias e astecas, abordando sua origem, além de mitos e histórias que a cercam. Entre diversos fatos interessantes, explicaram que os primeiros relatos de consumo do fruto do cacaueiro indicam apenas versões líquidas, consumidas como bebidas em rituais.
Seguindo essa história, a primeira receita da aula foi um drinque autoral de Floriana, o Néctar de cacau! Preparado, obviamente, com néctar de cacau (também chamado mel de cacau),gengibre, pimenta rosa, suco e raspas de limão cravo e kombucha, à qual se deve o aspecto espumante e fermentado do coquetel. Leve, sem álcool, um verdadeiro néctar do Brasil.
Na sequência, Carla entrou em cena com duas receitas. A primeira, o interessantíssimo pato no cacau. Uma mistura do nosso pato no tucupi com o mole, o molho típico mexicano, que aqui recebeu temperos diferentes, feito com com licor de cacau, tucupi preto, pimentas amazônicas e chocolate 80% cacau. A chef serviu o pato desfiado com o molho intenso no recheio de uma tortilha, para ser degustada com as mãos. O sabor potente e, talvez, não familiar àqueles que nunca experimentaram os usos salgados do chocolate, surpreendeu e agradou a todos.
+ Confira como preparar o pato do cacau de Carla Pernambuco
A segunda receita apresentada por Carla foi uma sobremesa, o “Terra Brasilis”, feito com crumble de cacau, suspiro de açaí, creme de cupuaçu, banana caramelizada, calda de cacau e chocolate branco. A sobremesa condensou diferentes texturas e usos do cacau.
+ Veja a receita completa do Terra Brasilis
O painel acabou com todos provando o “Sinestesia Cacau”, uma bebida com especiarias e leite de coco em pó. Uma verdadeira aula de gastronomia e história que, apesar de milenar, ainda não foi totalmente explorada
A receitas mais democrática de todas as receitas
Prata da casa, figurinha presente em todas as edições do Paladar Cozinha do Brasil, a querida chef Helô Bacellar encerrou o evento de 2023. Mesmo após anos de aulas, foi só nesta edição que ela decidiu apresentar seu prato preferido para os participantes do painel, nada mais, nada menos que a farofa.
“Quero deixar bem claro para todo mundo, que a panela da farofa é muito democrática, cabe o que você quiser ali dentro. Com um princípio você pode fazer farofa do que você quiser, e vai ser sempre bom”, afirmou a chef.
Helô começou a aula contando um pouco sobre sua mudança definitiva para sua fazenda em São Luiz de Paraitinga. Foi de lá inclusive que vieram os ovos, incrivelmente laranjas e vibrantes, da primeira receita apresentada. Ela contou que todos os dias, logo cedo, vai buscar seus ovos fresquinhos para o café da manhã.
Dessa vez, eles foram parar em uma farofa de farinha de milho grossa com couve refogadinha e paio. Foi só o paio entrar na frigideira, que junto com o barulho da panela, tomaram conta do salão ecos de “nossa”, “meu deus” e “que delícia”. Coisas de Heloisa Bacellar. Enquanto a couve fritava, ela deu dicas para sua farofa sempre sair perfeita. A principal? Anote aí: Não poupe na manteiga!
+ Confira a receita completa da farofa de farinha de milho com ovo e couve
Na sequência foi a vez de uma farofa com sotaque paraense, feita com farinha d’água, de grão mais seco e crocante, combinada com feijão manteiguinha de Santarém e uma pasta de coentro, que deixou a mistura bem verdinha e atraente.
Outra dica de ouro da Helô foi: Não tem regra! Tem um pouco de coentro sobrando na geladeira? já para a panela! Se não tiver, pode substituir por cebolinha, salsinha, o que tiver ao alcance das mãos; misturar tudo também vale e vai muito bem! “Cabe o que tiver na geladeira e combina com tudo”, avisa a chef.
+ Receita farofa paraense com feijão manteiguinha e coentro
Simpáticas bandejas de alumínio carregando pratinhos com um punhado de cada uma das receitas apresentadas na aula começaram a chegar às mãos dos participantes, enquanto a chef preparava a última receita do dia: uma farofa de castanhas, com farinha de mandioca, cebola picadinha e um mix de castanhas brasileiras picadinhas e crocantes.
+ Veja como preparar a farofa de castanhas
Helô ainda fez justiça à hospitalidade do interior paulista e trouxe de casa, região do Vale do Paraíba, uma cachaça local e serviu “golinhos” a todos, deixando a experiência ainda mais com a sua cara. Foi o final perfeito para um fim de semana de imersão nas raízes profundas da gastronomia do nosso Brasil. O gostinho que dá é que, mesmo após 10 edições de Paladar Cozinha do Brasil, ainda temos muito para descobrir e aprender sobre as cozinhas e tradições do nosso País.