Especial para o Estado
O primeiro registro que menciona a Herdade de Coelheiros, no Alentejo, é de 1467, anterior, portanto, à descoberta do Brasil. A propriedade integrou o dote recebido por Dom Ruy de Sousa pelo casamento com Branca de Vilhena. Ao longo dos séculos, a Herdade passou por diferentes proprietários e chegou a ser ocupada no período que se seguiu à Revolução dos Cravos, em 1974. Com todo esse passado, não deixa de ser uma ironia que, em 2015, tenha sido comprada por um simpático casal de brasileiros: Alberto Weisser e Gabriela Mascioli.
Alberto e Gabriela, que estiveram no Brasil para mostrar seus vinhos, seguem uma trilha já conhecida por outros brasileiros. Um deles foi o investidor Marcelo Lima, que, em sociedade com o inglês Tony Smith, comprou a Quinta de Covela, no Minho, e as quintas da Boavista e das Tecedeiras. Outro brasileiro que está produzindo vinhos em Portugal é o pernambucano João Carlos Paes Mendonça, antigo dono da rede Bompreço, que comprou a Quinta Maria Izabel, no Douro.
O caminho que levou Alberto e Gabriela ao Alentejo foi um pouco diferente. Embora sejam primos em segundo grau, o relacionamento só resultou em casamento (o segundo de ambos) há sete anos. Com ar brincalhão, Gabriela revela a única condição que impôs para o casamento com o primo, formado em economia e administração pela USP e que fez carreira nos EUA. Teriam que ter um “projeto conjunto” para quando se aposentassem.
Na época, Alberto era presidente e CEO do grupo Bunge, um dos gigantes mundiais do setor de grãos, posição que ocupou até 2013. Foi então que o tal “projeto” começou a tomar forma. Embora tenha-se formado em administração e trabalhado no mercado financeiro, Gabriela é apaixonada por gastronomia. Por muitos anos manteve, em São Paulo, a livraria especializada Mille Foglie, que também abrigava um café.
Acabaram optando por Portugal e por escolher a região do Alentejo, próxima a Lisboa, como alvo principal. Uma das razões é que atualmente Alberto é consultor e membro do board do grupo PepsiCo.
Como num filme. A compra da Herdade de Coelheiros, após muitas idas e vindas, parece enredo de filme. Na verdade, Alberto e Gabriela tinham ido visitar uma propriedade vizinha, bem menor, acompanhados de um corretor de imóveis. Na saída, ele propôs que conhecessem a Herdade por ser uma quinta histórica, uma vez que não estava à venda. Foi paixão à primeira visita, só consumada alguns meses depois, quando conseguiram comprá-la dos antigos proprietários por valor não divulgado.
Com área de 800 hectares, a Herdade tem apenas 50 plantados com vinhas. Boa parte da área é ocupada por mata nativa, sobreiros e nogueiras. E por animais como javalis, ovelhas, veados selvagens e, obviamente, coelhos. Ela fica em Igrejinha, próxima a Arraiolos, famosa pelos tapetes. Por isso, o detalhe de uma tapeçaria antiga foi escolhido para ilustrar o rótulo dos vinhos, cuja produção só ganhou relevância na década de 1980.
Antes, era a caça que atraía os proprietários. Reformar a casa principal, onde antes funcionava uma pousada, foi a primeira prioridade do casal, que, a essa altura, já tinha decidido torná-la sua residência oficial. A contratação do enólogo Luis Patrão veio a seguir. Além de, na época, atuar na equipe da Herdade do Esporão, a maior do Alentejo, Patrão tem seu próprio projeto-vinícola (Vadio) na Bairrada, junto com a mulher, a brasileira Eduarda.
As decisões tomadas a seguir pelos novos proprietários parecem surpreendentes, até em razão do investimento feito na compra. Primeiro, a de reduzir drasticamente a produção própria: de aproximadamente 400 mil para menos de 100 mil garrafas na safra do ano passado (o vinho que sobrou foi vendido a granel), priorizando a qualidade. Segundo, a de eliminar o antigo rótulo de entrada (Ciranda), o mais barato, e reagrupar os vinhos em apenas três linhas, com preços num patamar superior aos que vigoravam anteriormente: Coelheiros, branco e tinto (¤ 10); Tapada de Coelheiros, branco e tinto (¤ 30) e Vinha do Taco (¤ 45).
Uvas nativas. Investir prioritariamente em castas nativas foi a terceira decisão, o que levou a suspensão da produção de um dos vinhos mais conhecidos da Herdade, 100% Chardonnay, cuja última safra (2016) é a que está no mercado. O replantio de castas autóctones em lugar das internacionais (a Herdade também é famosa por seu Cabernet Sauvignon, por sinal a cepa mais plantada) será feito aos poucos. E de forma não radical. E a orientação não é focar apenas nas castas, mas principalmente no terroir. Se o vinho sempre fez parte da vida de Gabriela, até por suas origens italianas, também está presente nas memórias de Alberto. Ele conta que quando tinha 18 anos foi proibido de consumir bebidas alcoólicas por um ano, em razão de uma hepatite. E que durante esse ano abstêmio seu sonho era participar de uma colheita de uvas na França, quando fosse liberado da restrição médica. Ele pode, agora, realizar esse sonho todo ano, quase sem precisar sair de casa.