Ao longo da trajetória para provar o pingado em mais de uma dezena de endereços em São Paulo, ficou evidente que não há um único pingado: alguns são mais cremosos, outros são mais líquidos; há quem não sirva sem o copo americano, outros já abraçaram aquela xícara mais longa; e, é claro, há também o eterno debate se é café com leite ou leite com café. O fato é: até hoje, não há um consenso de como deve ser preparado o pingado perfeito.
No entanto, temos algumas dicas do que pode e do que não pode ser feito. Em 2010, por exemplo, surgiu o movimento Eu Adoro Pingado, que buscava manter viva a história da bebida. Dentre outras coisas, havia um texto-manifesto que pregava algumas regras. Há, é claro, uma preocupação básica com a qualidade da bebida, em termos de usar café de qualidade, leite integral (ainda que outros sejam aceitos) e poder diluir o café espresso.
Mas não há margem para interpretação das quantidades. “O pingado usa apenas um pouco de leite, o suficiente para criar uma cor de caramelo ao se combinar com o café. A média é uma variação que leva mais leite, até o ‘meio a meio’”, explica o texto do movimento, encabeçado por Ensei Neto, especialista em café e colunista de Paladar. Hoje, ele ainda mantém a opinião de que há apenas um jeito de fazer um café pingado de verdade.
“O café tem que ser coado para ser um pingado de verdade”, argumenta Ensei, quando questionado sobre como é um pingado perfeito. “Pra fazer, você pega o copo americano e enche de café até um dedo pra marquinha, pro risco. E o resto você completa com leite”.
Para Ensei, e uma boa quantidade de baristas, qualquer coisa diferente não é pingado. Café com leite meio a meio? É só café com leite. Café, leite e espuma de leite vira a média. Café, chocolate, leite e chantilly é o mocha. Café com leite vaporizado? Capuccino italiano. Já o latte macchiato, que a garçonete ofereceu para substituir o pingado, nada mais é do que expresso com leite vaporizado e uma quantidade generosa de espuma de leite no topo.
“Um bom pingado precisa apenas de bons ingredientes: um leite integral de boa qualidade e um café bem torrado e extraído. Aí, a proporção de um e de outro depende muito do gosto do cliente: tem gente que gosta bem escuro, puxado no café. Outros preferem só uma gotinha de café no leite”, explica Débora Dalmolin, gerente da Padoca do Maní, questionada sobre o passo a passo. “Pingado que é pingado é mistura de café com leite. Quando entram outros elementos vira outra bebida. Nada contra, mas é outra bebida à base de leite e café”.
No entanto, vale dizer: nada está escrito em pedra. “Tem lugares que usam mais café do que leite, já outros, mais leite do que café. Não é uma ciência exata, mas uma nostalgia da coisa e do sabor”, diz a barista Letícia Souza, que faz seu pingado com café coado concentrado enquanto adiciona o leite, sem vaporizar, conforme você deseja. “É uma bebida com conforto. Então dá pra preparar um belo pingado feito com grãos de qualidade”.
Desaparecimento do pingado
“Me vê um pingado, por favor”, disse, ao entrar em uma padaria na região do Ipiranga, zona sul de São Paulo. Naquele momento, já esperava receber um copo americano, típico, com o café ornamentado com alguns pingos de leite, ganhando aquela cor caramelizada. No entanto, a resposta não foi o que esperei: não tinha pingado no cardápio, só latte macchiato. Não é a mesma coisa. E, infelizmente, esse é um movimento que perdura.
Em 2010, o movimento Eu Adoro Pingado já indicava uma “gourmetização” da bebida. “O mercado está vivendo o pleno florescimento das cafeterias, que trazem consigo uma nova cultura de consumo do café e de suas bebidas derivadas, entre elas o Machiatto, combinação do espresso com leite vaporizado”, diz o texto do manifesto desse movimento.
Hoje, Ensei mantém a visão de que muitas coisas estão mudando. “As padocas começaram a fazer o café espresso, esqueceram do café coado, e não é a mesma coisa. Assim, é uma questão de espaço. A gente tem tanta coisa brasileira boa, mas preferem pegar coisa de fora ser diferente. Por isso eu digo que a gente tem que valorizar o que é brasileiro”.
Mas, apesar de tudo, o pingado continua delicioso -- e muito pedido. “Há inúmeras padarias e cafeterias tradicionais em São Paulo que fazem o pingado da mesma forma há anos, décadas, e tem clientes fiéis”, diz Letícia. “No nicho de cafés, tem espaço para todo mundo”.