Quase nunca é amor ao primeiro gole. No começo, a memória afetiva vai buscar no sabor de algum xarope contra a tosse sua referência mais familiar. “Tem gosto de remédio”, dizem os não-iniciados. Mas, com o tempo, o estranhamento vai derretendo e o encontro de três partes iguais de gim, vermute tinto e Campari produz aquilo que o jornalista Robert Simonson chamou de “improvável poesia”.
Nunca se trata apenas de beber um negroni. Você precisa se relacionar com ele. E, como todos sabem, não é de bom tom esquecer o aniversário de um amigo. O negroni, uma das pedras fundamentais da coquetelaria mundial, está completando 100 anos. O centenário será celebrado nos principais balcões do mundo. Até o fim do ano, o drinque será revisitado e reaparecerá em diversas cartas (de bares premiados a botecos sem nenhum estirpe). No Brasil, as comemorações começaram com uma festa no bar Riviera e vão até junho, quando o Negroni Week irá ocupar mais de cem estabelecimentos no País.
A longevidade e o sucesso do “amigo” têm múltiplas razões. Apesar da complexidade no sabor, ele é um drinque democrático. Qualquer pessoa pode reproduzir a receita em casa e os ingredientes são fáceis de encontrar nos supermercados. Sim, é preciso muito esforço para “errar” em um negroni. “A simplicidade da receita, o método de preparo e até a utilização de um copo baixo, do tipo que todo mundo tem em casa, têm ajudado as pessoas a se interessarem mais pela coquetelaria”, afirma Marco de la Roche, mixologista e chefe de bar do Riviera e editor do Mixology News.
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Além disso, ele também tem funcionado como um tutor etílico, uma espécie de orientador de paladar. “Graças ao negroni e, claro, à experiência que as pessoas já tem com ele, eu posso oferecer drinques com um pouco mais de amargor ou notas herbáceas”, diz Douglas Peres, bartender do Tan Tan. “Sem dúvida, o negroni é responsável por abrir o leque de paladares das pessoas. Com ele, o obstáculo do amargor foi ultrapassado”, comenta Paulo Freitas, embaixador da Campari no Brasil.
O negroni é a base, a fundação, de muito daquilo que foi (e continua sendo) criado. Não é difícil encontrar quem prefira adicionar mais gim à receita original (diminuindo a quantidade dos outros ingredientes). Experiências de envelhecimento em barris de carvalho, amburana e outros estão cada vez mais comuns (assim como versões pré-prontas do drinque).
Mas, claro, nem sempre foi assim: “É interessante ver o que aconteceu com o negroni no Brasil. No começo, lá atrás, antes da retomada, era difícil alguém pedir negroni no bar. Era coisa que pegava mal. Além disso, era feito de qualquer jeito, no olho e com uma matéria-prima que não era a mais adequada”, conta Alexandre D’Agostino, bartender do Apothek.
A partir do negroni, mixologistas e bartenders têm criado suas variações. Em bares como o Apothek, por exemplo, existem versões do coquetel com Jerez, licor marrasquino e cachaça. No premiado Guilhotina, o negroni vai com rooibos (um arbusto usado para fazer chá) e chocolate. O Espaço Zebra apresenta o negroni nativo, com vermute infusionado de catuaba e sassafrás.
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Já no H. Gin, o negroni é preparado com destilados produzidos pelo próprio bar – e com um amaro caseiro no lugar do Campari. “Estou há dois anos buscando produzir um vermute e um amaro que ficassem interessantes no negroni. Tive o dilema de fazer algo com personalidade própria ou algo que se aproximasse da personalidade do Campari clássico. Essa primeira versão é uma interpretação minha. Não é um clone de um negroni com Campari”, conta Luis Marcelo Nascimento, mixologista do H. Gin.
Assim como qualquer produto cultural (e coquetelaria é cultura), o sucesso do drinque não se sustenta apenas no álcool e em seu consumo. “Negroni, assim como gim tônica, são coquetéis emblemáticos. Mas não se trata apenas de bebida. Ele trouxe um elemento de status”, diz o editor do Difford's Guide no Brasil, Marcelo Sant'Iago.
Pois é, vai longe o tempo do tiozão tomando Campari com a barriga encostada no balcão da padaria. O marketing da marca tratou de transformar o produto em algo cool (ou hipsterizado). Anualmente, a marca lança um curta metragem (Red Diaries), dirigido por um diretor importante (o deste ano é Matteo Garrone). Em 1984, Federico Fellini dirigiu um dos filmes. Os roteiros são menos importantes do que o clima sexy e de mistério que eles imprimem. Desde 1920, a marca produz cartazes com ilustradores italianos famosos. A partir dos anos 2000, atrizes como Salma Hayek, Penélope Cruz, Uma Thurman e Kate Hudson figuram como estrelas de calendários da Campari.
A origem do negroni
Assim como qualquer história nascida dentro de um bar, a origem do negroni não pode ser tratada como verdade absoluta. A narrativa mais aceitável (e sóbria) é a de que o coquetel foi criado em 1919, em Florença, na Itália, pelo bartender Fosco Scarselli. Diz a lenda que uma bela tarde o Conde Camillo Negroni, que tinha acabado de passar uma temporada nos Estados Unidos (onde teria levado uma vida de caubói), entrou no Caffè Casoni e pedido ao Scarselli, um “americano” mais forte que o habitual (o americano é um dos antecessores do negroni, leva Campari, vermute tinto e club soda).
Eis que Scarselli substituiu o club soda pelo gim e criou o negroni – paternidade dividida, claro, com o próprio Conde Camillo. Existem relatos de que o nobre conde chegava a entornar 40 negronis por dia – diminuindo para 20 depois de uma advertência médica (os mesmos relatos, talvez em busca de alguma veracidade, também dizem que os copos eram pequenos). Para complicar um pouco, a família de outro conde também reivindica a criação do coquetel. Trata-se do General Pascal Oliver, conde de Negroni – que assim como Camillo também teria tido uma vida extravagante.
Oliver juntou-se ao exército francês aos dezoito anos e desempenhou importante papel na guerra franco-prussiana (1870 – 1871), tendo sido inclusive condecorado pelo imperador Louis Napoleão. Como se não bastasse, segundo essa versão, ele teria inventado o negroni na ilha de Córsega. Uma vez que Oliver morreu em 1913, essa versão implicaria em rever a data de aniversário do coquetel. Mas, para efeito comemorativo, venceu o conde Camillo.
Aos poucos, o negroni foi se espalhando. Em 1947, o cineasta Orson Welles fez uma bela definição do drinque: “O bitter é excelente para o fígado, o gim é ruim para a saúde. Um compensa o outro”.
Ao longo dos anos, altos e baixos da coquetelaria fizeram com que o negroni estivesse em maior ou menor evidência. O drinque passou pela moda dos martinis, old fashioneds e até pelos coloridos e açucarados anos 80. Em meados dos anos 90, com a cena nova-iorquina reaquecida e o revival dos drinques, o negroni foi novamente ocupando seu lugar ao redor do mundo. “O negroni é um dos grandes responsáveis pela retomada da coquetelaria no mundo. Se hoje nós estamos vivendo aquela que pode ser considerada a nossa melhor fase, devemos muito às portas que o negroni abriu”, diz Spencer Amereno Jr.
* EM UM COPO COM GELO, DERRAMEI 30 ML DE GIM, 30 ML DE VERMUTE TINTO, 30 ML DE CAMPARI. MEXI COM O DEDO, COMO SÓ SE FAZ EM CASA. ADICIONEI UMA CASQUINHA DE LARANJA PARA ME SENTIR MAIS PROFISSIONAL. FUI PARA A FRENTE DO COMPUTADOR ESCREVER SOBRE O NEGRONI COM O DRINQUE NO COPO. ACHEI PRUDENTE AVISÁ-LOS.