O processo é lento, mas irreversível: o mapa das indicações geográficas (IGs) brasileiras já tem nítidos contornos. Isso quer dizer que produtos peculiares de várias regiões do País compõem um amplo panorama, digamos, enogastronômico, que, aos poucos, se dá a conhecer. E, assim, vamos descobrindo nossos terroirs – ou, em bom português, nosso território.
Nesse mapa estão o vinho do Vale dos Vinhedos, no Sul, o café do Cerrado Mineiro, a cachaça de Paraty, a carne dos Pampas gaúchos – entre outros produtos ainda pouco conhecidos. Hoje, no País, já há 41 IGs reconhecidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o Inpi – das quais 60% são relacionadas a produtos alimentares ou bebidas.
O Vale dos Vinhedos é reconhecido como Denominação de Origem desde 2012 – a primeira de vinhos no País. FOTO: Gilmar Gomes/Divulgação
O certificação da IG protege produtos e serviços que têm suas qualidades atreladas à origem. Ele se subdivide em duas categorias, Denominação de Origem e Indicação de Procedência (leia mais ao lado), nos moldes das proteções de origem comuns na Europa.
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O mais novo pedido de reconhecimento de IG brasileira foi feito nesta segunda-feira: produtores de cacau do sul da Bahia pediram certificação do fruto e seus derivados – o mais notório, o chocolate.
O assunto vem chamando cada vez mais atenção, com eventos frequentes em torno do tema e uma crescente institucionalização, como ficou evidente no 3º Simpósio Internacional de Indicações Geográficas, que reuniu mais de 200 pessoas na semana passada em Ilhéus, na Bahia.
Antes disso, no fim de outubro, dezenas de produtores rurais se encontraram em Belo Horizonte para o lançamento de um catálogo ilustrado com todas as IGs brasileiras, produzido pelo Sebrae. Já no início do próximo ano, o IBGE vai publicar o mapa com a delimitação das IGs, a ser incluído no Atlas Geográfico Escolar, usado como material didático no País.
O reconhecimento das IGs pelo Inpi cresceu em progressão geométrica nos últimos anos. A lei que criou as IGs é de 1996, mas só após seis anos foi reconhecida a primeira IG brasileira – o Vale dos Vinhedos, em 2002. Pelos seis anos seguintes, até 2008, só quatro IGs haviam sido reconhecidas oficialmente. Em 2011, no entanto, o número saltou para 14. Hoje, já são 41.
Mas, qual o impacto desse emaranhado de números e siglas? Na prática, eles significam que toda a cadeia dos produtos agroalimentares protegidos tende a melhorar. A explicação é simples: no processo para obtenção da certificação, produtores são obrigados a se associar (a IG é concedida apenas a pessoas jurídicas) e acabam afinando processos e melhorando a qualidade do produto final. As IGs envolvem majoritariamente pequenos produtores e a agricultura familiar, que se beneficiam de um maior valor nos produtos protegidos pelo selo.
“Quando criamos a associação de produtores do Vale dos Vinhedos, em 1995, a região era desconhecida no Brasil. Hoje, todo mundo que bebe vinho associa o Vale dos Vinhedos a qualidade”, diz Jorge Tonietto, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho. Ele conta que, durante o processo para o pedido da IG, uma série de testes físico-químicos aferiram a tipicidade e a qualidade do vinho. O projeto deu tão certo que mais três regiões na Serra Gaúcha seguiram o mesmo caminho e obtiveram IG (Pinto Bandeira, Altos Montes e Monte Belo; em agosto, Farroupilha fez seu pedido).
“A IG dá credibilidade no mercado. E garante ao consumidor a rastreabilidade do produto”, diz Maria Helena Jesk, presidente da Associação dos Produtores de Doces de Pelotas, que recebeu a IG em 2012. Após resgatar receitas tradicionais – com a ajuda de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) – de doces de influência portuguesa, que datavam da fundação da cidade gaúcha, em meados do século 18, as quatro produtoras da região adaptaram suas fórmulas de camafeu, beijinho de coco, olho de sogra. Aboliram o leite condensado e o chocolate, ganharam reconhecimento para além das fronteiras pelotenses e aumentaram o faturamento. Triplicaram a venda dos docinhos, segundo Maria Helena, que tem os seus nas prateleiras do Empório Santa Luzia, em São Paulo.
Os produtores de cacau do sul da Bahia buscam o mesmo reconhecimento. “O cacau costuma ser vendido nas bolsas de valores com o nome do país de onde vem. Só o nosso, que é reconhecido pela qualidade, leva o nome da região”, diz Rodrigo Barretto, presidente da Associação Cacau Sul Bahia. Após seis anos de articulações, a associação conseguiu reunir 2.500 produtores de mais de 83 municípios. A meta agora é resgatar o valor do cacau local, aprimorando o cultivo e treinando a mão de obra para melhorar a qualidade. E mudar o preço: em vez de ser vendido na bolsa, como commodity, por R$ 100 a arroba, o preço passa a R$ 300, pagos por fabricantes de chocolates especiais. “A grande indústria não reconhece o valor de um cacau melhor. Então vamos abrir outros mercados”, diz Rodrigo.
De norte a sul do País, os pontos de uma teia complexa, que se forma à margem dos circuitos comerciais e produtivos de larga escala, vão se ligando. “Tem gente dizendo que estamos banalizando as IGs. Ora, é justo o contrário! Está faltando IG no Brasil”, diz Lucia Regina Fernandes, coordenadora-geral de IGs e registros do Inpi. O instituto, diz ela, recebe em média 20 mil pedidos de patentes e 150 mil pedidos de registro de marca por ano – e apenas 9 pedidos de IG. “Agora, vai ver a França, Portugal, Espanha: com territórios muito menores que o nosso, têm muito mais IGs reconhecidas. O potencial do Brasil é imenso.”
O que é Indicação Geográfica?
A Indicação Geográfica (IG) é uma forma de proteção de produtos e serviços que têm uma origem determinada. Pense no presunto de Parma, no champanhe francês, no vinho do Porto: certos produtos ganharam fama pelo mundo por sua qualidade. E foram imitados. Para garantir, então, que eram mesmo verdadeiros, criaram-se formas oficiais de reconhecimento da origem, relacionada a um território, desses produtos.
No Brasil, a IG foi instituída em 1996 (no âmbito de negociações de acordos comerciais de propriedade intelectual, os Trips). É por isso que a IG é concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), responsável também pela salvaguarda de marcas e patentes.
A certificação tem duas modalidades: a Denominação de Origem (DO) e a Indicação de Procedência (IP). À diferença de outros países, o Brasil também concede IGs a produtos não agroalimentares.
A IP reconhece a reputação de um nome geográfico na produção de serviço ou bem. Ela apresenta menos exigências – e por isso é mais comum no País (ver mapa) – do que a DO. Esta refere-se a serviço ou bem cujas qualidades se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.
A IG não tem prazo de validade. São as próprias associações de produtores que o detêm as responsáveis por fiscalizar se registro está sendo devidamente usado.
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D.O. – Denominação de Origem
1. Vale dos Vinhedos
O Vale dos Vinhedos é reconhecido como Denominação de Origem desde 2012 – a primeira de vinhos no País. Antes disso, em 2002, foi a primeira Indicação de Procedência do Brasil. É o grande exemplo de IG bem-sucedida: uniu produtores, valorizou a região e os produtos.
A área protegida fica no Planalto das Araucárias, numa altitude entre 500 e 700 metros, no nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. Em 2007, os espumantes e vinhos finos da região foram certificados também no mercado europeu. Marcas da região como Casa Valduga e Pizzato viraram referência de vinhos de qualidade no Brasil.
2. Cerrado Mineiro
FOTO: Divulgação
Com rígido controle de qualidade – os grãos só podem ser da espécie arábica, têm de ser colhidos verdes, guardados em armazéns certificados e atingir pontuação mínima de 80 (segundo padrão internacional para cafés especiais) –, a região do Cerrado Mineiro tem Denominação de Origem desde o início do ano. Já tinha a Indicação de Procedência desde 2005. Os 300 produtores certificados (na região, há 4.500) têm ainda de se comprometer a respeitar as leis sanitárias, ambientais e trabalhistas. O café de lá, noroeste de Minas Gerais, a 800 metros de altitude, acaba indo mais para o mercado externo. “Vendemos para fora 70% da produção. O mercado interno ainda não paga tão bem”, diz Juliano Tarabal, da associação de produtores da região.
3. Camarão da Costa Negra
FOTO: Divulgação
Perto da desembocadura do Rio Acaraú, são criados os camarões da chamada Costa Negra, no litoral oeste do Ceará. Os micro-organismos presentes na água da região servem de alimentação natural dos camarões, criados em tanques. É essa alimentação que lhes confere aspecto graúdo e carne de boa consistência.
Quase todo camarão produzido por lá é vendido em supermercados em todo o País – pouco mais de 1%, apenas, vai para o mercado externo. A Costa Negra cearense tem a certificação de Denominação de Origem para seus camarões desde 2011.
4. Arroz do Litoral Norte Gaúcho
FOTO: Bruno Casarin/Divulgação
Doze municípios compõem a região do litoral norte gaúcho, na península que fica entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico. Com plantações próximas a grandes massas de água, a área se beneficia de solo bem irrigado e de uma temperatura que oscila pouco, resultando em clima ameno. Dessa forma, o arroz fica mais translúcido e firme. A região foi a primeira a obter a certificação de Denominação de Origem no Brasil, em 2010. Dificuldades de financiamento, no entanto, impedem que o produto da região chegue ao mercado. “É difícil competir privilegiando a qualidade e não o volume”, diz Clovis Terra, presidente da associação de produtores local.
I.P. – Indicação de Procedência
1. Alta Mogiana No norte de São Paulo, sobre planalto entre 900 e 1.000 metros de altitude, cultiva-se café especial certificado, da espécie arábica e de grãos mais finos
2. Altos Montes Na Serra Gaúcha, a região produz vinhos e espumantes finos, com uvas de colheitas mais tardias do que nas áreas vizinhas
3. Canastra O famoso queijo é feito de leite cru por pequenos produtores na Serra da Canastra, em Minas
4. Goiabeiras As panelas de barro da cidade capixaba viraram patrimônio gastronômico: são elas que dão forma às famosas moquecas
5. Linhares O premiado cacau da região capixaba serve à produção de chocolates finos no Brasil
6. Microrregião da Abaíra A bicentenária cachaça fez a fama da região no interior da Bahia, na Chapada Diamantina
7. Monte Belo Na Serra Gaúcha, a pequena cidade tem a maior produção de uvas per capita do País, que viram vinhos finos
8. Mossoró O melão amarelo dessa região do Rio Grande do Norte já é conhecido em todo o País
9. Norte Pioneiro do Paraná O café verde em grão da região é protegido desde 2012
10 .Pampa Gaúcho Na Campanha Meridional, animais das raças angus e hereford comem pastagens nativas e resultam em carnes nobres
11. Paraty Na região na costa fluminense, as saborosas cachaças datam dos tempos coloniais
12. Pelotas
13. Piauí A cristalina cajuína piauiense foi protegida por IP em setembro
14. Pinto Bandeira A região gaúcha tem se destacado pelo alto nível de seus tintos, brancos e espumantes
15. Região da Serra da Mantiqueira de Minas Gerais O café é cultivado desde fins do séc. 19 em altitudes elevadas e tem sido premiado
16. Região de Salinas A IP presta justiça à fama da cachaça desse canto de Minas, bem conhecida no Brasil
17. São Tiago Nessa pequena cidade mineira encontram-se mais de 20 tipos de biscoito artesanal
18. Serro De leite cru de vaca, o queijo dessa região mineira é mais intenso que o da Canastra
19. Vale do Submédio São Francisco As uvas de mesa e mangas protegidas têm IP desde 2009
20 Vales da uva Goethe As variedades da uva há 100 anos na região de Urussanga (SC) dão vinhos típicos