Especial para o Estado
A expressão “flying winemaker” (enólogo voador, em tradução literal) foi criada para definir o trabalho de profissionais que prestam consultoria a vinícolas ao redor do mundo. E cujos nomes no rótulo frequentemente se tornam mais importantes do que o próprio vinho.
Em tese, Alberto Antonini seria um deles. Aos 59 anos, ele mesmo conta que há quase 25 percorre o mundo várias vezes por ano, a serviço de dezenas de vinícolas em 12 países (em breve, provavelmente 13). Muitas ficam na Itália, onde nasceu e onde fez carreira, que o levou a enólogo-chefe da poderosa Antinori, antes de tornar-se consultor. Entre elas, a Poggiotondo, na Toscana, fundada por seu pai e hoje administrada por ele e pela esposa, Alessandra. É onde moram o casal e os três filhos. Estados Unidos, Canadá, Israel e até a Armênia entram na lista. Na América do Sul, está ligado a inúmeros projetos na Argentina e no Chile, em vinícolas como a Altos Las Hormigas (da qual é sócio e fundador) e Concha Y Toro.
Antonini acaba de visitar o Brasil para apresentar novos vinhos da moderníssima vinícola uruguaia Garzón, a única no país vizinho que assessora. Mas, uma conversa com ele mostra exatamente o oposto da imagem comumente atribuída a esses profissionais. A começar pelo fato de que não gosta que se associe seu nome aos vinhos que ajuda a fazer. “Vinhos de enólogo são um erro gigante, fruto de uma cultura que valoriza o culto à personalidade”, diz. Referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, completa: “se Alberto Antonini é reconhecido num vinho, é porque ele se equivocou totalmente”.
Antonini é adepto fervoroso dos chamados vinhos de terroir. “Os vinhos de que gosto são vinhos que entregam sua identidade, seu caráter, que falam de seu lugar de origem”. Essa é praticamente uma declaração dos princípios que adota. Talvez o melhor exemplo seja o fato de que, há muitos anos, defende o uso de tanques de concreto, sem revestimento de epóxi, para fermentar os vinhos; e de grandes tonéis de madeira para que estagiem. Por óbvio, não aprecia barricas novas de carvalho, ainda que as vezes o faça, se o cliente desejar e também porque não é fácil comprar barricas usadas.
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Para justificar essa preferência, recorre à tradição. “A madeira”, explica, “nunca foi um elemento para caracterizar e dar gosto ao vinho; antes, era apenas o material com o qual se construíam recipientes para fermentá-los e criá-los”. Segundo Antonini, ela só ganhou importância quando “o mercado, sobretudo o norte-americano, começou a pedir madeira, porque gostava de vinho com sabor de madeira”.
Nem precisaria ser dito que ele próprio não gosta. “A mim não agrada colocar ‘barbecue sauce’ (molho de churrasco em inglês, outra língua estrangeira que domina) num bom bife”. Não por acaso, enólogo, madeira e mercado estão entre os grandes inimigos dos vinhos de terroir apontados por ele, numa lista em que também menciona a “sobrematuração” das uvas e a “sobre-extração”. O que condena, implicitamente, são os chamados vinhos “parkerizados”, que dominaram o mercado nos últimos trinta anos por influência do crítico norte-americano Robert Parker. E que tem, em comum, exatamente tais atributos: são feitos com uvas muito maduras e combinam muito corpo (extração) com uso generoso de barricas novas de carvalho, em geral francês.
Mas não se pense que Antonini se julga um profeta nessa cruzada. Para ele, usar tanques de concreto e grandes tonéis, não tem nada de novo. “É como se fazia vinho na Itália, na Argentina ou no Uruguai há 70 anos”. Na Armênia, essas tradições continuam vivas, como no uso de ânforas de barro. Ao fazer vinhos no país, Antonini aprendeu que as ânforas funcionam melhor enterradas. “Mas não faço isso porque está na moda; faço porque eles já faziam há oito mil anos”.
O mesmo vale para questões polêmicas, como a do cultivo orgânico ou biodinâmico. Embora acredite que esse é o único caminho para uma agricultura saudável e para produzir vinhos de qualidade, ressalta que essas sempre foram práticas usadas por agricultores em todas as partes do mundo. “Os Incas eram biodinâmicos”, diz. E acrescenta: “para produzir vinhos de terroir, é fundamental que a terra se mantenha viva e sã”. Mesmo assim, não deixa de registrar que hoje muita gente tenta produzir vinhos naturais, orgânicos ou biodinâmicos sem ter o conhecimento para fazê-lo, e assim acaba “vendendo defeito como virtude”.
A busca pela autenticidade parece ser o eixo central de sua filosofia de vida. Citando Soldera, um dos produtores mais respeitados do Brunello di Montalcino, diz que aprendeu com ele a importância de oferecer uma alimentação saudável para os filhos, que se traduz em “eliminar produtos industriais e incutir neles a cultura dos sabores verdadeiros”, a mesma que busca em seu trabalho. Talvez por isso, não surpreende que seu próximo passo como consultor deva levá-lo a Geórgia, antiga república soviética. A par ser considerada o berço da cultura enológica, com sete mil anos de história, a região reúne atrativos irresistíveis para alguém como ele: “é um país fantástico, com mais de 500 variedades autóctones e terroirs extraordinários”.
Os inimigos dos vinhos de terroir
● Sobrematuração (das uvas) ● Sobre-extração (do vinho) - Por descaracterizarem o vinho ● Madeira - Quando aporta aromas e sabores ● Agrônomo - Quando usa químicos de síntese ● Enólogo - Quando quer que se note sua presença no vinho ● Mercado - Quando diz o que deve ser feito