Na maior parte do tempo, chefs de cozinha estão às voltas com a compra de ingredientes, o cardápio, a mise-en-place e tudo o que envolve a longa e exaustiva jornada de um restaurante. Alguns deles, porém, reservam parte de seu tempo para fazer doações, num exercício de filantropia que passa longe da carteira. O que esses cozinheiros oferecem são seu conhecimento e as habilidades que podem ajudar a transformar vidas.
Pessoas como as da foto acima estão contribuindo para melhorar a merenda nas escolas, dão oficinas culinárias para populações carentes e há até quem ajude na administração de um hospital, caso de Jun Sakamoto. Com seu trabalho voluntário, eles mostram que é possível fazer o bem em qualquer lugar, usando qualquer profissão. Por isso, foram os escolhidos para ilustrar esta reportagem – e estimular você a fazer sua parte. Mas eles não são os únicos.
Há chefs que cozinham para uma causa de forma esporádica, como no projeto Chefs pela Cura, da Tucca (Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer), que reúne voluntários para dar aulas aos acompanhantes das crianças em tratamento no hospital Santa Marcelina. Helena Rizzo, Rodrigo Oliveira, Paulo Machado, Fábio Vieira e Flávio Miyamura já passaram por lá, entre muitos outros.
Recentemente, o Refettorio Gastromotiva – a cozinha social criada pelo estrelado italiano Massimo Bottura e David Hertz, da Gastromotiva, no Rio, para alimentar pessoas em situação de risco social – envolveu chefs estrelados do Brasil e do exterior. A própria Gastromotiva já nasceu com o objetivo de capacitar jovens de baixa renda. Papel similar tem o Instituto Capim Santo, da chef Morena Leite, que oferece aulas de culinária em parcerias com outras entidades, como a ONG André Franco Vive, onde o chef Renato Carioni já deu aulas.
“Quando a gente pratica atividade voluntária, é como se a gente expiasse uma certa culpa, né?”, conta Mara Salles, do restaurante Tordesilhas. Para Janaina Rueda, do Bar da Dona Onça, esse tipo de trabalho faz tão bem a quem doa como a quem recebe. “Quando se faz ação social, a troca é humana. Pela primeira vez, parei de tomar remédio para dormir. Minha energia foi transformada.”
Mara e as mulheres
A chef Mara Salles conheceu a Fundação Tide Setubal quase dez anos atrás por meio de um primo, deu uma aula de culinária no prédio que fica no Jardim Lapenna, extremo leste da capital, e resolveu que esse passaria a ser seu presente de aniversário desde então. Todo mês de maio, fielmente pelo menos desde 2009, são três dias de imersão ao lado de cerca de 30 mulheres atendidas no Galpão da Cidadania da fundação.
“São mães que se casaram cedo, vivem com medo pelo futuro dos filhos, que os maridos se metam em confusão. Então, as aulas são um momento de liberdade, um ponto de apoio na comunidade.”
Lá, Mara fala de economia doméstica, dá aula de molhos, faz reconhecimento de ingredientes que elas em geral não conhecem, como endívias e tomate-caqui, “coisas que abrem possibilidades para elas trabalharem como saladeira numa restaurante por quilo, por exemplo”. A maior parte das pessoas atendidas ali busca um espaço no mercado de trabalho, conta Mara, e usa aulas como essas para se capacitar. Assim, aprendem o que é cortar legumes em julienne (tirinhas finas) e brunoise (cubos bem pequenos) e conhecem técnicas que no seu entorno são desconhecidas, como queimar uma berinjela na boca do fogão ou fazer molho salgado com abacaxi.
Para Mara, além do caráter educativo das aulas, o projeto traz troca de energia, ainda mais intensa com quem mora na periferia, onde as pessoas andam mais na rua, os vizinhos se falam. “Aqui no meu prédio raramente vejo meu vizinho, estou de porta trancada e ele também. Lá, as mulheres estão batendo papo nas calçadas.”
Uma onça nas escolas estaduais
Desde agosto deste ano, Janaina Rueda arrumou uma nova cozinha onde dar expediente – e não é outro restaurante além do seu Bar da Dona Onça e d’A Casa do Porco. Topou reformular a merenda das escolas estaduais de todo o Estado e começou a dar treinamento às merendeiras. Já passou 20 dias na Escola Estadual Maria José, na Bela Vista, onde ela mesma estudou, e começou a treinar merendeiras de outras escolas – a ideia do projeto é atingir até 2018 as mais de 7.000 cozinheiras e 2,8 milhões de alunos de todo o Estado.
Em turmas de cerca de 50 mulheres, elas ocupam uma das cozinhas da Escola Técnica Estadual (Etec) da Santa Ifigênia para aprender a fazer as 10 receitas que Janaina criou para melhorar a qualidade do que vai no prato dos alunos.
Ela dispensou enlatados e nuggets e, com outros insumos já licitados há meses, ela fez pratos como macarrão com molho de moela ou de sardinha, estrogonofe, feijoada, cuscuz paulista feito com cereal de milho moído e outros que já foram servidos aos alunos do Maria José e provados pelo Paladar.
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Até dezembro, a chef vai dar aula para as merendeiras da região central, visitar as escolas e o projeto segue por outras regiões em 2017, também de forma voluntária.
A ideia do projeto, conta Janaina, é dar mais sabor às receitas, tornar a merenda mais atraente, além de orientar as merendeiras sobre a história dos pratos e passar conhecimento com eles. “Quero transformar as merendeiras em cozinheiras pela educação, é mais uma disciplina para os alunos”, diz ela, que no ano passado deu expediente na Fundação Casa de Itaquaquecetuba (SP) com aulas mensais de culinária a internos.
Para a merenda, está sendo escrita uma cartilha com as receitas, a ser distribuída nas escolas, além de estar sendo criado um aplicativo para que os alunos sejam os supervisores da qualidade do que vai no prato. As próximas compras de ingredientes para a merenda mudam também com o projeto - nada mais de nuggets.
Cerâmica do bem
A ceramista Hideko Honma tem uma mania incorrigível: sempre gostou de transformar os presentes de aniversário em presentes para os outros. Ao completar ano, pedia para amigos doarem o que achassem razoável para alguma instituição. Em 2007, ela estava no restaurante Kinu, do Hyatt, justamente comemorando o aniversário ao lado do marido enquanto o chef e amigo Adriano Kanashiro apresentava o menu novo em peças de Hideko para diretores do hotel.
Na primeira oportunidade, quando ouviu de um deles que a comida ficava muito bem nas peças, engatou: “A gente podia fazer um evento servindo comida em louças dessas”. Ele achou boa a ideia, ao que ela emendou: “Mas tem de ser beneficente”. Semanas depois, eles criavam a primeira edição do Sukiyaki do Bem, que nesta sexta-feira (9) chega à 10ª edição, no hotel Tivoli Mofarrej.
O convite de R$ 500 é multiplicado por 350 lugares, e a renda é quase toda revertida à Assistência Social Dom José Gaspar – Ikoi no Sono, um retiro para idosos em Guarulhos, criado inicialmente para receber imigrantes japoneses. A outra parte da renda (10%) vai para uma instituição escolhida a cada dois anos - agora, é o Gigante Beisebol Clube, que cuida de crianças e adolescentes em situação de risco no Bom Retiro.
A organização do evento ocupa praticamente o ano todo de Hideko. Desde janeiro ela já está pensando nos tipos de louça a fazer - para o jantar de seis etapas, preparado por chefs voluntários como Salvatore Loi, cada receita ganha uma louça diferente. Os convidados levam uma dessas para casa e ainda participam do leilão com outras. No total, são quase 2.500 unidades feitas com a ajuda de seus 35 alunos - as aulas acabam girando em torno dos pratos que ela precisa para o jantar, e eles acabam fazendo parte da ação solidária.
O evento fez tanto sucesso que três anos depois Hideko criou outra ação beneficente anual, a Sopa na Caneca, para ajudar outras instituições - e dá-lhe também caneca de cerâmica sendo praticada nas aulas em seu ateliê.
Esses chefs são especiais
Dois restaurantes, dois bares, um programa na TV aberta, outros em canais fechados e Henrique Fogaça não deixa de ir, há quase oito anos, ao Instituto Chefs Especiais, no Pacaembu, dar aula, uma vez por mês, aos alunos com Síndrome de Down. São crianças, adolescentes e adultos, de idades misturadas de acordo com o nível do Down, entusiasmados para as oficinas de culinária, mesmo que rodeados de cuidados para empunharem uma faca, por exemplo.
A satisfação deles em colocar a mão na massa, como fazer um nhoque com Henrique, é o momento de prazer também na rotina do chef do Sal Gastronomia e do Jamille. Ele descobriu o instituto quando o fundador Márcio Berti, também dono da fábrica de panelas La Grande Maison, lhe vendia uma peça. Ouviu de Henrique a história de sua filha e o chamou para conhecer a entidade.
É que antes de criar rotina com os alunos com Down, Henrique já lidava em casa com a síndrome da filha mais velha, de 9 anos - tão rara que até hoje não foi descoberta, e demanda uma pessoa ao seu lado o tempo todo. A frustração em não poder cozinhar para a filha, que se alimenta por sonda, foi em parte transformada em entusiasmo para a oficina.
“A aula não tem nada de profissionalizante, a gente bate papo, eu fico lá com a criançada”, diz ele, que também ajuda a entidade em eventos, como a hamburgada que será realizada no dia 17/9, das 12h às 18h (R. Catanduva, 132, Pacaembu).
Resgate da cultura caiçara
Eudes Assis nasceu e cresceu no litoral norte, caçula de 14 filhos, não tinha luz elétrica em casa e só não passava fome, como diz, porque tinha peixe e banana em abundância no sertão de Camburi. Após viajar o mundo estudando (como na Cordon Bleu, em Paris) e trabalhando, voltou para o litoral e focou na culinária caiçara. Ficava indignado ao ver locais rejeitarem o tradicional prato azul marinho (peixe cozido com banana verde) para colocar creme de leite no camarão. Desde 2012, é isso o que ensina aos alunos do Projeto Buscapé, cuja vice-presidência ele exerce dividindo o tempo com o restaurante e bufê Taioba.
O Buscapé nasceu há cerca de dez anos com foco em educação no trânsito para crianças e adolescentes, devido ao alto índice de atropelamento na Rio-Santos. Cresceu e hoje ocupa a rotina dos caiçaras com oficinas de culinária (toda segunda-feira), judô, artes, teatroe outras.
Ganhou sede nova neste ano com o dinheiro que Eudes ajudou a arrecadar com arraiais gastronômicos anuais – desde 2012, levou para o litoral, não só para as aulas mas também para os eventos, nomes como Henrique Fogaça, Janaina e Jefferson Rueda, Flávio Miyamura, Alberto Landgraf, Rodrigo Oliveira.
“Começamos numa edícula caindo aos pedaços, com fogão doméstico. Agora temos uma sede com três andares, banheiro adaptado e cheiroso, forno combinado. A auto-estima das crianças está lá em cima.”
Hora da merenda
Desde que colocou o filho de 2 anos na escola municipal, no começo deste ano, a chef Bel Coelho, do Clandestino, passou a acompanhar de perto o que ele comia lá na hora do almoço. Resolveu ajudar a melhorar a qualidade da merenda ali, conversou com a nutricionista responsável por escolas da zona oeste e propôs à diretora dar aulas às merendeiras, para que o cardápio ficasse mais diverso com os próprios insumos que já são licitados pela prefeitura.
Há três meses, vai lá uma vez por mês, no dia da folga mensal quando na escola só estão funcionários e professores. Ao lado das três cozinheiras, já preparou salada de soja em grãos, arroz de galinha com maxixe e peixe assado com grão-de-bico.
Não são receitas fixas nem obrigatórias na escola - a ideia de Bel é ajudar a incrementar o repertório das merendeiras com os alimentos que estão na despensa, dando mais sabor aos pratos dos alunos. Como a escola é conveniada, e assim tem dinheiro para comprar a carne (que não é licitada), a intenção também é orientar essas compras, como a escolha do peixe.
Sushiman beneficente
Jun Sakamoto é sushiman, e o restaurante japonês que leva seu nome é um dos mais bem avaliados da cidade. Mas suas habilidades administrativas o levaram para um novo caminho - o gerenciamento de um hospital beneficente, o Santa Cruz, na Vila Mariana. Não da cozinha do hospital, mas do dia a dia que envolve contas a pagar, médicos, reformas e contratos diversos.
Era o ano de 2011 quando um tsunami destruiu parte do Japão e deixou centenas de milhares desabrigados. Jun começou a fazer eventos beneficentes para ajudar. “Eu não queria só arrecadar dinheiro, mas unir as principais entidades japonesas de São Paulo. Mandar um sinal de conforto.” Foi quando procurou entidades de comércio, consulado e hospitais, incluindo o Santa Cruz, muito ligado à comunidade japonesa.
Meses depois do evento em 2011, pela força que Jun tinha com vários ramos, incluindo empresários que são seus clientes no restaurante, o presidente do hospital o convidou para ajudar sendo parte da diretoria.
Jun começou como voluntário sem cargo, participava das reuniões, ajudava nos eventos, “metia o bedelho” em todos os setores, chegou a reunir R$ 30 mil para trocar o piso do centro cirúrgico só passando o chapéu, até que entrou para a chapa única que assumiria em 2012 - assim, foi o vice-presidente do hospital por três anos.
A chapa foi reeleita no ano passado, mas, meses depois, com problemas a resolver às vésperas da inauguração da segunda unidade da sua Hamburgueria Nacional, ele pediu para sair oficialmente da diretoria. Continua sendo consultado semanalmente pela equipe e ajudando à distância, esperando para voltar na próxima chapa da diretoria do hospital.