Dois ou três anos atrás parecia muito distante o dia em que poderíamos levar para casa uma carne maturada a seco, de sabor intenso e textura ultramacia. Mais precisamente em 2014, quando nos Estados Unidos o dry-aged já era febre, o Paladar registrou numa reportagem de capa os primeiros passos que o assunto dava por aqui. Açougueiros e cozinheiros faziam testes e, devido a esse caráter experimental, ainda não havia um lugar onde fosse possível comprar os cortes.
Agora, ao menos três açougues de São Paulo – Feed, DeBetti e Santa Bárbara – estão expondo essa carne de casca enegrecida bem à vista da clientela, gerando demanda mesmo que a partir da curiosidade. Mas, afinal, por que comprar carne dry-aged, cujo quilo chega a custar mais do que o dobro da carne convencional?
“Ela é muito mais saborosa, é uma outra brincadeira, diferente de qualquer coisa”, diz Pedro Merola, do Feed. A potência de sabor e a textura macia são alardeadas tanto por ele quanto por outros especialistas. Essas qualidades são possíveis porque, durante o período em que a carne “envelhece” em sistema refrigerado, as enzimas quebram intensamente as proteínas da carne, amaciando as fibras, reduzindo sua acidez e gerando aminoácidos responsáveis pela intensificação do sabor. O tempo de maturação é indefinido, de 25 dias até um ano. Ou mais.
Deu água na boca? Ela pode ser sua se estiver disposto a pagar mais de R$ 100 pelo quilo – o preço, justificam as casas, cobre a perda de massa (a carne perde líquido e reduz cerca de um terço do seu tamanho original) e o custo de deixá-la maturando nesse sistema. O Feed está fazendo dry-aged de 30 e 45 dias desde novembro do ano passado. São cinco cortes: porter house, t-bone, chorizo, ribeye (filé da costela) e prime rib, e o quilo custa R$ 129,90 (da raça angus) ou R$ 219,90 (se for wagyu). Merola se antecipa: não dá para gastar tempo e dinheiro maturando a seco uma carne comum, por isso a escolha dessas raças superiores.
No açougue, também é possível comer o dry-aged no almoço de segunda a sexta: o cliente compra a peça, a loja faz a porção na parrilla e leva-se o resto para casa – há bufê de acompanhamentos (R$ 59). Além de preparar a carne na churrasqueira, em casa dá para fazê-la na panela – de preferência de ferro e alta, para segurar o caldo, recomenda o Feed.
No DeBetti, que funciona desde o começo deste mês pela internet e vai abrir loja física no próximo mês no bairro Cidade Jardim, os cinco cortes são os mesmos do Feed e o quilo custa R$ 129 (são vendidas as peças por unidade, algumas com peso inferior a um quilo). Em sua câmara de refrigeração, o açougueiro Rogerio Betti matura as peças por 30 dias, mas diz que já chegou a 250 dias em testes que faz há cerca de três anos.
Em São Paulo, quem comercializa há mais tempo dry-aged é o açougue Santa Bárbara, que não quis falar com a reportagem. Nesta semana, em visita à loja, anotamos os preços expostos de t-bone, chuleta, chorizo e ancho: R$ 98 o quilo.
Nos restaurantes. Alguns chefs da cidade também andam explorando esse terreno. No fim de semana passado, o francês Julien Mercier serviu no Le Bilboquet todas as suas 40 peças de bife ancho no osso maturadas a seco por cem dias. A carne grelhada foi servida com purê de batata cremoso (R$ 110).
Julien deve preparar uma nova leva, que deve estar pronta a partir de julho, após cem dias. “Venho de um país em que a carne maturada 30 dias se chama carne, não dry-aged”, diz. Ele começou seus testes em 2013 e já deu uma aula sobre o tema no Paladar Cozinha do Brasil.
Àquela época, Jefferson Rueda e Alberto Landgraf também andaram fazendo umas peças. Rueda estava no Attimo e tinha voltado dos Estados Unidos, onde viu o método num dos maiores açougues do país, o DeBragga, em New Jersey.
O chef Marco Renzetti, da Osteria del Pettirosso, está testando o método com a bisteca à fiorentina. Mas ainda não sabe quando vai começar a servi-la.
Pode ou não pode? Apesar da oferta crescente de carne dry-aged, não existe regulamentação federal, estadual ou municipal que permita nominalmente esse tipo de maturação. Nem que proíba.
Segundo o Ministério da Agricultura informou ao Paladar, existem apenas orientações sobre carne maturada embalada a vácuo, e a maturação a seco representa “uma nova tecnologia e será avaliada como tal”.
Essa ausência de regras fez três açougues da cidade – Talho Carnes, The Butcher e No Ponto – recuarem da sua produção de dry-aged, entre 2014 e 2015. Leonardo Teixeira, do Talho, registra uma crescente demanda, mas prefere não depender dos humores dos fiscais da Vigilância Sanitária. “Tudo depende da interpretação que ele faz da lei.” Para Leon Isfahani, do Butcher, o processo é muito caro para se correr riscos.
Entre quem decidiu comercializar a carne, Pedro Merola, do Feed, diz que se embasa, entre outros, no decreto estadual 45.248, de 2000, que prevê a manipulação da carne num açougue. “A gente ainda manda a carne para análise em laboratório para ter um laudo de que a carne é saudável”, emenda ele.
Mostrar que a carne está boa, apesar de sua casca enegrecida, é uma das premissas também de Rogerio Betti. “Se você fizer um bom trabalho com dry-aged, provavelmente não vai ter tanto problema quanto se fizer um trabalho ruim com um produto regulamentado.”
Consultada, a Vigilância Sanitária municipal não se pronunciou sobre a maturação a seco, já que ela não existe em termos legais, mas informou que numa blitz observa as condições de higiene do local e de conservação dos produtos e avalia “as características sensoriais, o aspecto visual do produto, cor e odor”.
Secos e molhados
Maturação úmida (a vácuo) Em câmara refrigerada, a carne descansa até 21 dias embalada a vácuo. Com a proteção plástica, a carne não interage com a microbiologia do ambienteO que acontece: as fibras ficam menos tensas e a carne um pouco mais macia; não perde umidade e mantém sucos e acidez Maturação a seco (dry-age) Em câmara ventilada com temperatura controlada e umidade baixa (de 50% a 70%), a carne descansa por tempo indefinido. Sem embalagem, há proliferação microbiana, que escurece a casca da carne, mas a refrigeração previne a contaminaçãoO que acontece: as enzimas quebram muito mais rapidamente as proteínas da carne, amaciando as fibras e gerando aminoácidos que intensificam o sabor; com a alteração do PH, a carne fica menos ácida
Serviço
DeBetti https://compre.debetti.com.br
Feed R. Dr. Mário Ferraz, 547, Itaim Bibi, 5627-4700. 9h/21h (sáb., 9h/19h; dom., 9h/15h).
Santa Bárbara R. dos Três Irmãos, 524, Morumbi, 2176-8400. 8h/19h (sáb., 8h/18h; dom., 8h30/14h).