Janeiro é mês de alface: além de ser o início da estação da hortaliça, que é produzida com força até março, é também quando ocorre a temporada “psicológica” da folha, uma vez que todos querem se jogar na salada e se livrar dos quilos adquiridos no fim do ano. Mas o que pouca gente sabe é que a alface tem um potencial gastronômico muito mais rico do que apenas ladear o tomate e o pepino em um modesto pratinho de crus. Cada tipo da hortaliça tem sua especialidade e, a depender do varietal, pode ser grelhado, braseado, assado, usado como base para aperitivo, em patês, flans, sopas...
Em São Paulo, ainda se vê pouco disso. No Komah, coreano da Barra Funda, a alface entra como wrap para o samgiopsal, uma pancetta assada, glaceada com molho apimentado. Outros estão ainda em fase de experimentação, como o Maní, que em 2017 grelhou e cozinhou a romana para ver no que dava. “A procura por pratos com vegetais tem crescido muito e nós temos explorado novas abordagens”, afirma a chef Helena Rizzo. Para ela, a alface tem a função do macarrão: com um molho bom, brilha.
+ Os dez mandamentos da marmita perfeita+ Tap Tap sobe as portas no sábado e consolida eixo cervejeiro do Minhocão Pode parecer estranho falar de alface quando outras folhas é que têm a atenção de chefs e pensadores da cozinha, como as badaladas PANCs (plantas alimentícias não convencionais). Mas a verdade é que a alface é a folhosa mais produzida e consumida no Brasil. Para se ter uma ideia, em 2017, ocupou o segundo lugar no ranking de produtos da Ceagesp, com 49 mil toneladas, o que representa 20% de tudo o que chegou à companhia. (Só ficou atrás apenas do milho, um vegetal muito mais pesado, com 51 mil toneladas.) “Acho que a gente explora pouco a alface. Restringi-la a uma salada é que dá a ela uma fama meio triste. As pessoas associam a folha a emagrecer e a usam sempre como ingrediente principal”, afirma Thais Alves, do Factório. O chef do Evvai, Luiz Filipe Souza, concorda que a alface é injustiçada e já explorou suas possibilidades quando estagiou na Itália. “Temos costume de achar que a proteína está na frente dos vegetais, mas não deve ser assim. Dificilmente há algo tão versátil quanto a alface”, diz.
Dada a empolgação dos chefs com a hortaliça, o Paladar resolveu lançar um desafio e pedir receitas que tiram o melhor da folha, sendo a única restrição fugir da salada. Luiz Filipe Souza usou lisa e frisée, as branqueou, extraiu seu sumo e as grelhou. Helena Rizzo optou pela romana – parte virou suco, parte foi cozida. Já Thais Alves infusionou a romana com chá de coentro e a usou como suporte para um aperitivo.
CONFIRA AS RECEITA COMPLETAS:+ Alface romana com repolho, vinagrete de ponzu e vieiras, da chef Thais Alves+ Alface grelhada com creme azedo e ovas de truta, do chef Luiz Filipe Souza+ Alface romana, vatapá e leite de coco fresco, da chef Helena Rizzo
Alfacepedia: no início, entorpecente
A alface, ou Lactuca sativa, é a hortaliça mais popular do mundo. Pertencente à família das compostas, é parente da chicória e da endívia. De acordo com o Oxford Companion to Food, a primeira razão para o cultivo da folha não foi a gastronomia, mas a medicina. Há indícios de seu consumo desde os egípcios, mas sabe-se mais sobre os hábitos dos romanos, que comiam folhas e mais folhas de alface após o jantar para aproveitar seu efeito digestivo e sedativo. Mais tarde, descobriram outras variedades menos “narcóticas” e passaram a comê-la antes das refeições com a intenção de aumentar o apetite. A hortaliça chegou em 1494 ao Novo Mundo na expedição de Cristóval Colombo e, segundo o professor da Universidade Federal de São Carlos, Fernando Sala, acredita-se que chegou ao Brasil trazida pelos portugueses em 1650.
O futuro da folha: crocante e pequena
Um dos dramas da alface hoje no Brasil é o clima. A folha precisa de tempo ameno. No calor intenso, passa do ponto e desenvolve um amargor terrível. Se chove demais, a água não escoa e prejudica a colheita. A crespa, como não forma cabeça, permite mais escoamento, o que explica seu sucesso. Mas, insatisfeitos com seu desempenho gastronômico, pesquisadores têm trabalhado para mudar o cenário da produção nacional. Novos tipos começam a surgir nas prateleiras dos mercados, como a brunela, um híbrido da crespa (boa de produzir) e da americana (crocante e durável), criada pelo professor da Universidade Federal de São Carlos, Fernando Sala, há cinco anos.
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“A principal tendência na alface hoje é a diversificação de tipologias, principalmente com as mais crocantes, que funcionam melhor nas regiões mais quentes do Brasil”, afirma. Ele lembra que outro problema é a falta de refrigeração na cadeia, o que pede (de novo) folhas mais grossas e resistentes.
Já o pesquisador da área de melhoramento genético da Embrapa Hortaliças, Fábio Suinaga, afirma que , além das folhas mais resistentes ao calor, as baby leafs, menores e mais jovens, estão no futuro da salada brasileira. “É só pensar no perfil do consumidor: com famílias cada vez menores não faz mais sentido comprar aquele pé de alface gigante com 60 folhas popular anos atrás”, afirma.