Existem pratos que quando chegam à mesa parecem triviais. Mas, por trás, escondem os dotes de um verdadeiro cozinheiro. Com o aligot – descobrimos na marra –, é assim. A receita francesa que combina purê de batatas com uma quantidade quase obscena de queijo, de textura elástica e única, é um convite aos chefs da quarentena a testarem seu nível de técnica (ou determinação, como no nosso caso).
Em uma tarde de sábado, esta repórter resolveu testar a receita que se tornou emblemática por aqui, alguns anos atrás, pelas mãos do chef Alex Atala, do D.O.M., como forma de desafio culinário, para próprio entretenimento durante o isolamento. Amparada por uma longa pesquisa, que incluiu dezenas de vídeos do YouTube – que, por sua vez, gerou grande confiança pela simplicidade do passo a passo –, tive meu ego gastronômico desacreditado. A cada punhado de queijo que adicionava ao purê sedoso, nada da fita se formar. Deu errado, deu muito errado.
“Tem algum pulo do gato aí”, pensei. Depois de muita conversa com quem entende do assunto, deu para perceber que esse não é um jogo para amadores (minha confiança se restabeleceu em segundos após ver chefs premiados falharem na primeira tentativa). Mas vamos aos fatos, ou melhor, à técnica.
Receita simples, pede poucos ingredientes: batatas, queijo, creme de leite, manteiga e sal. Primeiro, você deve fazer um excelente purê de batata, leia-se: cremoso e sem grumos. Para isso, é necessário escolher a batata correta – no caso, as com maior teor de amido, da família das farinhentas, como a Asterix, e menos aguadas. Evite as cerosas, tipo a Monalisa. A água, inclusive, é inimiga número um do aligot. Ela atrapalha no processo de emulsificação da batata com o queijo, que dá liga (aquela elasticidade característica) ao prato. Você verá, na receita aqui, que cozinhamos as batatas na água – testamos e deu certo. Outra sugestão é assá-las no forno cobertas com sal grosso: ficam ainda mais secas.
Além da batata, é preciso atenção na escolha do queijo, afinal de contas, são os outro 50% da receita. Tradicionalmente, o “verdadeiro aligot” pede o uso do Tomme fraîche, produzido em Aubrac, no centro da França, berço da receita. Em tempo, o aligot nasceu pelas mãos dos monges. “Era, a princípio, uma sopa de pão com o queijo, oferecida aos peregrinos que passavam pela cidade, a caminho de Santiago de Compostela, na Espanha”, conta Renata Braune, chef professora da escola Le Cordon Bleu em São Paulo. Só depois do século 19 que a batata, mais abundante no período, substituiu o pão na receita.
Por aqui, não é possível encontrar tal queijo, então a saída é substituí-lo por outro similar, que alcance resultado parecido. “Mas não será o mesmo sabor. O Tomme usado no aligot tradicional é fresco, produzido há quatro ou cinco dias, de sabor ácido, único”, esclarece o chef francês Alain Poletto, do Bistrot de Paris.
A dica de Braune é misturar o queijo minas padrão com um outro queijo macio com maior porcentagem de gordura, como o gruyère, gouda, ou até mesmo um queijo da Canastra meia-cura. “Cinquenta por cento de cada um, mas é preciso saber equilibrar. Um bom aligot deve ter tanto o sabor da batata quanto do queijo presentes”, explica. No curso que conduz na escola francesa, a chef ensina uma versão de aligot tupiniquim, substituindo a batata pela mandioca (veja receita ao lado), que é ainda mais rica em amido, deixando, assim, o preparo mais fácil – esse pode ser, aliás, o seu ponto de partida nessa prática. Fica a dica.
A chef Morena Leite, do restaurante Capim Santo, formada na França, também faz uma releitura usando a mandioca. Sua versão combina a tapioca a um creme de cebolas, além de uma boa quantidade de queijos parmesão e Canastra.
Na prática
Antes de ir para a cozinha, outros pontos valem ser observados durante o preparo: a altura do fogo, a firmeza e a constância dos movimentos durante o preparo. O aligot deve ser feito em fogo baixo, porque tanto o purê quanto o queijo sofrem com temperaturas altas (nos dois casos, elas provocam desacomodação da gordura dentro da mistura). Se o aligot talhar, não tem jeito, a receita está perdida (aconteceu aqui) e tem de ser iniciada novamente. Esse preparo não admite erro.
Paciência, força e firmeza de movimentos durante a execução também são importantes para que haja uma boa distribuição de calor na panela e para que a mistura fique bastante homogênea.
Missão cumprida? O aligot pode ser servido sozinho, antes da sobremesa, no lugar do queijo, como fazem os franceses, ou acompanhado de uma boa carne. A única regra é servir imediatamente após o preparo.
Agora, se a vontade de comer um aligot é maior que a determinação culinária, você pode recorrer aos chefs que já preparam a receita com primor há alguns anos. Vai lá: D.O.M. (R. Barão de Capanema, 549, Jardins) no menu-degustação (R$ 700) ou no Sal Gastronomia (R. Minas Gerais, 352, Higienópolis), do chef Henrique Fogaça, que serve o aligot acompanhado do magret de pato (R$ 135).
Truques e astúcias para um bom aligot:
● Cozinhe as batatas inteiras com a casca, para evitar que elas absorvam mais água durante o cozimento. Descasque depois de cozidas. É preferível usar batatas com polpa branca, ricas em amido e com pouca água, tipo Asterix. ● O queijo deve estar em um grau de maturidade preciso para se obter um bom resultado. O queijo muito fresco não dará liga ao purê. E o bem maturado vai deixar o aligot pesado. O queijo ideal deve ser macio. Para testar, você deve furar um pedaço do queijo com um garfo previamente aquecido no fogo por 30, 40 segundos. Depois de quente, se o queijo solta um fio que não se quebra, ele está perfeito para ser usado. Use um bom gruyère ou gouda combinado ao minas padrão. ● Fogo baixo sempre. O controle da temperatura é imprescindível para o sucesso do aligot.