A gordura vence o papel vagabundo e mela um pouco os dedos, mas não muito; a massa faz ‘crec’ na dentada, sem esfarelar; o vapor sobe às narinas, queima de leve a ponta do nariz; ali embaixo, não muito longe, entre paredes úmidas repousa o recheio. A primeira mordida num pastel pode ser descrita de mil formas, e nenhuma vai traduzir a experiência gastronômica mais comum, democrática e prazeirosa que se pode ter em São Paulo.
É impossível dissociar essa experiência das feiras livres paulistanas, que, neste ano, completam 100 anos. Boa parte dessa história é contada pela massa frita dourada, inflada de ar, recheada e fumegante de um palmo de altura que faz o engravatado e o pé-descalço sentarem lado a lado numa barraca montada sobre o asfalto.
A época da chegada dos pastéis às feiras livres é incerta. Estima-se que começaram a aparecer, pelas mãos de famílias de ascendência japonesa que já trabalhavam com verduras e legumes, em meados da década de 1950. Da origem da receita, que viria da China, também não há certeza: a massa de arroz frita teria sido adaptada por aqui à farinha de trigo pelos portugueses e depois adotada com gosto pelos japoneses.
O fato é que, de meados do século 20 para cá, os pastéis viraram instituição gastronômica, frequentada e devorada por gente de diferentes classes sociais – e países. É comum a cena de um gringo piscando os olhos surpreendido pela fumacinha quentíssima que sai de dentro da massa – para logo depois fartar-se com a fritura numa das 880 feiras de São Paulo, entre um gole e outro de caldo de cana.
Concurso No centenário das feiras, a prosaica cultura pasteleira da cidade é valorizada. Prova disso (não bastasse a associação direta do paulistano entre o pastel e a feira) é que, este ano, retorna à cena o concurso de melhor pastel de feira de São Paulo – a competição existia desde 2009, mas no ano passado foi cancelada por falta de acordo entre o Sindicato dos Feirantes e a Prefeitura. A Secretaria de Abastecimento anunciou, no entanto, o retorno da prova, que deve ser realizada em novembro. Com degustações às cegas, o concurso elege os melhores pastéis da cidade e ajuda a movimentar o mercado – e elevar o padrão do petisco.
“Depois que ganhei, em 2009, no dia seguinte dobrou o movimento da barraca”, diz Kinuko Yonaha, mais conhecida como Maria, do Pastel da Maria, que virou até franquia. Maria continua nas feiras, onde começou a trabalhar aos 12 anos.
Hoje, aos 62, ela tem uma fábrica na Casa Verde para abastecer seu negócio e fornecer também para outros pasteleiros e restaurantes – calcula usar 200 kg de farinha por dia na produção da massa. “(Com o concurso) aumentou também a fiscalização sanitária e alguns pasteleiros ficaram bravos. Mas acho que melhorou a qualidade para todo mundo”, diz Maria, que freou a abertura de mais franquias por não conseguir controlar o que é vendido com seu nome. “Meu lugar é na feira. Foi ela que me deu sustento na dureza e, depois, sucesso.”
Assim como Maria, há 804 pasteleiros autorizados a trabalhar até seis vezes por semana nas feiras de São Paulo. Bem antes do modismo da comida de rua, estava lá, na rua, o pastel. E na rua ele resiste.
Gourmet? Recentemente, a onda gourmetizante engoliu também o petisco. Em 2013, ex-funcionários do grupo Fasano lançaram A Pastella. A loja se dizia pastelaria gourmet, por usar óleo de canola canadense, rechear a massa com coisas como alcachofra e queijo brie e virou piada na internet. O negócio, porém, parece ter dado certo: uma filial foi aberta este ano no bairrro de Moema.
O mercado para a massa frita abriga todos: pastelarias familiares tradicionais seguem lotadas, como a Yokoyama, desde 1967 no bairro de Mirandópolis, ou a Yoka, desde 1996 na Liberdade, que ainda têm como mais vendidos os clássicos carne, queijo e palmito.
FOTO: Leo Feltran
DICAS: em busca do pastel perfeito
+ VEJA A RECEITA DE PASTEL DE FEIRA
É certo que na feira ele é irresistível – embora muitos pasteleiros feirantes usem ingredientes pouco nobres como Ajinomoto e gordura hidrogenada. Mas em casa, pastel de qualidade se faz apenas com água, farinha e sal – e um pouco de cachaça, para dar crocância à massa, asseguram especialistas. Tem gente que usa ovo, leite, óleo, mas a versão básica funciona bem. “Não tem por que complicar – senão não é mais pastel”, diz Maurício Lopes, professor de gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi.
Para fazer o pastel perfeito, gordinho, crocante, sequinho e bem dourado, basta cumprir as regras (e alguns truques) como os que você vai ler a seguir. Não acertou de primeira? Verifique os passos e dê mais uma chance.
A rua, a feira, o bar e a pastelaria são o hábitat natural do pastel. Mas é simples fazer a fritura em casa – com os truques dos profissionais reunidos abaixo, reproduz-se ao menos uma parte da experiência gastronômica pasteleira.
A massa
Pinga ni mim O truque é familiar, mas funciona. “A cachaça não é mito”, diz Lucas Medina, professor de gastronomia do Centro Universitário Senac. “Deixa a massa mais crocante.” Ele diz que a bebida pode também ser substituída por algum outro álcool de cereais. Pastelarias como a Yoka, na Liberdade, também usam a pinga na mistura da massa.
Sovar, sovar Uma vez misturada a massa, a primeira dica é sovar bastante, para que ela fique bem lisa, homogênea e elástica.
Espessura Esticar a massa com cilindros é o ideal: quanto mais fina ela for, mais leve e crocante ficará o pastel depois de frito.
Direto pro óleo Com a massa pronta, o ideal é rechear logo e fritar, mas se for guardar, enrole-a em plástico filme, que mantém a umidade e não deixa ressecar.
O recheio
Sem entuchar… “A massa não pode ser entuchada de recheio. Tem que ter aquele espaço para o vapor sair devagarinho”, diz Maurício Lopes, professor de gastronomia da Anhembi Morumbi.
…E sem vazio exagerado O espaço para o vapor, no entanto, não pode ser demasiado – entre metade e um terço do recheio é boa medida.
Para não desandar Deixar o pastel recheado pronto na geladeira pode desandar a massa. Recheou, fritou.
A fritura
Sem onda “O segredo está na fritura”, diz Maria Yonaha, do Pastel da Maria. Quando o óleo está na temperatura boa para fritar ele “fica parado” – antes disso, pequenas ondinhas formam-se na superfície do líquido, diz Maria.
Barulhos e borbulhas A melhor forma de saber se já é hora de começar a fritar é jogar um pedaço de massa e observar como reage: deve fazer bolhas na hora e barulho.
Para não encharcar Se o óleo estiver frio, a massa não borbulha nem faz barulho e encharca; se estiver quente demais, faz bolhas demais e torra logo. Para quem tiver termômetro, o ideal é cerca de 180°C.
Quanto mais óleo, melhor Com 1 litro, frita-se um pastel grande como o da feira por vez. Com mais litros, frita-se mais e controla-se a temperatura: o óleo esfria mais devagar.
Sabor suave O óleo utilizado faz diferença no sabor: de canola ou girassol são mais suaves. “Aquele ‘gosto de fritura’ é dado pelo óleo de soja”, diz Lucas Medina.
Vira-vira O pastel normalmente boia na fritura e algumas partes acabam não ficando imersas no óleo. Deve-se virá-lo para que a fritura seja homogênea.
Olho vivo Na temperatura correta, o pastel deve ficar fritando por entre 30 segundos e 1 minuto. Mas o olho é que determina: quando a massa está dourada e cheia de bolhas, com as bordas ameaçando amarronzar, é hora de tirar.
Seco e crocante Para o pastel ficar sequinho, não se deve colocá-lo imediatamente de pois de frito no papel toalha, Deve-se secá-lo primeiro numa peneira ou mesmo em um escorredor de macarrão.